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publicado por Riacho, em 17.07.13 às 21:29link do post | favorito

Para recordar a modernidade de João XXIII!

 

O Papa João XXIII e a abertura à modernidade por Fernanda Henriques

 

Agradeço o convite que me foi feito para estar aqui, e queria explicar porque é que tive a ousadia de o aceitar não sendo eu especialista em nenhuma dimensão de questões eclesiais. Foi uma espécie de desafio porque o Papa João XXIII foi sempre uma figura extremamente significativa do meu imaginário pessoal pela ideia de bondade e de frontalidade na defesa da justiça que forjei dele, respigando aqui e ali informações, mas sem nunca ter aprofundado o meu conhecimento. Aceitar este convite foi decidir-me a aferir o fundamento da minha adesão. A escolha do título também se prende com a história da minha relação com essa minha imagem de João XXIII, que o representava como a pessoa que foi capaz de abrir a Igreja à modernidade.

 

Simone Weil e a necessidade de abertura da Igreja à Modernidade

Foi a filósofa francesa Simone Weil que colocou no centro da minha leitura – há já muitos anos – a importância de a Igreja se abrir institucionalmente à modernidade. Simone Weil é uma figura conhecida nos meios cristãos, portanto, não me vou alargar com explicações, mas quero referir dois ou três aspetos que me parecem fulcrais para a minha perspetiva. Simone Weil viveu na primeira metade do século XX, tendo morrido em 1943, 20 anos antes do Concilio Vaticano II ter sido convocado por João XXIII e este facto fez toda a diferença na vida dela, do meu ponto de vista.

 

PORQUÊ?

A filosofia de Simone Weil é fortemente marcada pelo seu sentir pessoal e pelas diferentes experiências de vida da autora. Evidentemente que o pensamento – filosófico, no caso – tem sempre a ver com a experiência, mas não é dessa relação habitual que eu falo. Para Simone Weil era preciso viver as situações sobre as quais escrevia. Isto é, ela não se limitava a escrever sobre as situações, escrevia de dentro delas. Por isso, teve de experimentar, por exemplo, como era a vida do operariado para ser capaz de escrever sobre perspetivas políticas pelo que trabalhou na linha de montagem de carros da Renault. No meu entender, o seu pensar é a transposição para o plano concetual de cada uma das suas experiências existenciais profundas. No aspeto espiritual e religioso essa necessidade de passagem pela vivência era ainda mais radical.

 

Creio que neste âmbito é sobejamente conhecido o caso Simone Weil que, tendo uma adesão quase absoluta aos princípios cristãos tal como os entendia, todavia, recusou sempre o batismo qua a integraria na comunidade cristã.

 

E PORQUÊ ?

Porque, como explica ao Padre Perrin, que considerava um “amigo de Deus”, isso seria uma desonestidade da parte dela porque não correspondia ao sentimento místico que experimentava. A Igreja do seu tempo funcionava como um obstáculo para a sua vivência dos valores do cristianismo. Duas coisas a mantinham fora da Igreja – a ideia de anátema e a ideia de que fora da Igreja católica não há salvação. Para ela era impensável uma Igreja, simultaneamente, cristã e excludente de tudo o que de bom e belo a humanidade tinha sido capaz de construir. Se Simone Weil não tivesse morrido tão jovem, certamente teria exultado com o espírito que presidiu ao Concílio do Papa João XXIII. E a sua vida espiritual teria sido, certamente, menos angustiante e dilemática.

 

João XXIII, o Concílio Vaticano II e a abertura da Igreja à Modernidade

Na verdade, aquilo a que o aggiornamento que sustentou a vida do Vaticano II veio pôr fim foi ao solipsismo da Igreja, ou seja, a um certo autismo que foi desenvolvendo. E que é compreensível, de um certo ponto de vista, se atendermos ao tempo. Tal como a filosofia – com XXVIII séculos – a Igreja – com os seus XX – olhava para a ciência – esse apanágio da modernidade e para os seus V séculos, necessariamente, com

complacência e superioridade e, evidentemente, sem a considerar à altura de dialogante possível. Nesse sentido da perspetiva temporal pode-se compreender um certo fechamento da Igreja sobre si própria. João XXIII, ao convocar o Vaticano II e ao colocá-lo sob a bandeira do aggiornamento e, consequentemente, do diálogo, rompeu com esse autismo da Igreja e introduziu no seu seio o ruído do mundo humano com o que de bom e de mau ele convoca. Falar de aggiornamento significa 2 coisas significativas:

 Primeiro, reconhecer que a Igreja estava descompassada em relação à sociedade em que se inseria.

 E segundo, que era necessário pôr-se a compasso com ela. Ou seja, não se tratava de afirmar dogmas, de corrigir erros, mas sim de fazer sintonizar a mensagem espiritual do cristianismo com o mundo a que se dirigia.

 

O papa João XXIII acreditava, de facto, na bondade da história humana.

Não é por acaso que no discurso de abertura solene do Concílio, a 11 de Outubro de 1962, ele afirma que “a Igreja, como esperamos confiadamente, engrandecerá em riquezas espirituais e, recebendo a força de novas energias, olhará intrépida para o futuro. “ E discorda “desses profetas da desventura, que anunciam acontecimentos sempre infaustos, como se estivesse iminente o fim do mundo. “ É também, por isso, que pode dizer: “é necessário que esta doutrina certa e imutável, que deve ser fielmente respeitada, seja aprofundada e exposta de forma a responder às exigências do nosso tempo. Uma coisa é a substância do « depositum fidei », isto é, as verdades contidas na nossa doutrina, e outra é a formulação com que são enunciadas, conservando-lhes, contudo, o mesmo sentido e o mesmo alcance. Será preciso atribuir muita importância a esta forma e, se necessário, insistir com paciência, na sua elaboração.”

 

Mas João XXIII também acredita na bondade do ser humano, em si mesmo.

Por isso, pode instituir o diálogo como constitutivo da nova forma da Igreja se relacionar com o mundo – substituindo o anátema pela misericórdia e, por isso também afirma que a Igreja deve “Promover a unidade na família cristã e humana”. O diálogo – a outra face do aggiornamento – é o sinal da rutura do enclausuramento de Igreja. Diálogo para dentro da Igreja, diálogo com as outras Igrejas e diálogo com a realidade cultural.

E esses sinais não faltam no pontificado de João XXIII. Para citar alguns: a supressão de “pérfidos judeus” da liturgia de sexta-feira santa ou a diplomacia em relação ao bloco de leste.

Dentro deste contexto, penso ser importante recordar a organização da Gaudium et Spes que, como sabemos, não começa por Deus ou pela Igreja, mas sim pela Condição Humana no Mundo - Introdução: A Condição Humana no Mundo de Hoje – bem como a sua primeira parte, com 4 capítulos, em que só no último se analisa o papel da Igreja.

— l.a Parte: A Igreja e a Vocação Humana

Cap. I: A Dignidade da Pessoa Humana

Cap. II: A Comunidade Humana

Cap. III: A Actividade Humana no Universo

Cap. IV: O Papel da Igreja no Mundo deste Tempo

Creio que vale a pena lermos o que se diz logo no início da Introdução

“ § Para bem cumprir a tarefa que lhe cabe, a Igreja deve perscrutar incessantemente os sinais dos tempos e interpretá-los à luz do Evangelho, de modo a poder responder, por forma adaptada a cada geração, às eternas interrogações dos homens quanto ao sentido da sua vida presente e futura e quanto às suas mútuas relações. Importa, pois, conhecer e compreender este mundo em que vivemos, suas espectativas e aspirações, e o carácter por vezes dramático de que estas se revestem. Eis seguidamente, tais como nos é possível esboçá-los, alguns traços fundamentais do mundo atual.” Penso ser importante realçar esta ideia da Constituição Pastoral Gaudium et Spes de que “Importa conhecer e compreender este mundo em que vivemos, suas espectativas e aspirações”, na medida em que ela remete para o caráter intrinsecamente bom da

realidade. Não que não exista mal no mundo – existe, claro, algum desse mal é mesmo da nossa responsabilidade, mas, o que é importante e novo, é o suposto de que em si mesmo o mundo não é um mal .

 

O teólogo Jacques Dupuis comenta alguns aspetos da Gaudium et Spes, assinalando 4 dimensões que relevam de um espírito de abertura à realidade e ao seu valor intrínseco que quero realçar no contexto desta linha reflexiva:

a. Que a vontade salvífica universal não é uma simples possibilidade teórica, mas uma realidade concreta, agindo nas pessoas;

b. Que Jesus Cristo e seu mistério pascal constitui a possibilidade concreta de salvação para mulheres e homens de boa vontade;

c. Que esta salvação os atinge pela ação universal do Espírito Santo;

d. Que a maneira como essa salvação ocorre fora da igreja permanece misteriosa.

 

Para a maior parte de nós hoje, esta perspetiva já aparece como natural. É necessário que façamos um esforço de imaginação para conseguirmos ter a perceção de um tempo de clausura mental e de maniqueísmo, em que a vida humana, enquanto humana, era destituída de valor e vista como um calvário de que era necessário libertarmo-nos.

 

No quadro de tantas mudanças, cabe perguntar: João XXIII foi um super herói?

Víctor Codina, nas análises que faz quer do Concílio quer da Igreja pré-conciliar, enumera muitas razões e contextos explicativos do Vaticano II, mas, apesar disso, reafirma que foi necessário aparecer alguém capaz de catalisar toda a efervescência teológica e eclesial que se vivia então, sublinhando que esse foi o papel de João XXIII e que a sua figura e personalidade são essenciais para se compreender o Concílio.

 

Creio que é aqui que está o ponto: ser capaz de sentir o seu tempo e de lhe dar forma. E penso que foi este gesto de corporizar o espírito do seu tempo – como diria Hegel – que traça a marca indelével de João XXIII. Só uma profunda atenção à dinâmica da realidade e uma radical abertura ao desenrolar da história pode permitir a alguém escutar a alma do seu tempo e deixá-lo dar à luz o que nele está maduro. João XXIII não esteve à frente do seu tempo. Ele foi um homem do seu tempo. A leitura do seu Diário põe-no, claramente,em evidência. Asua religiosidade, o modo

como analisava a inocência e o pecado, a forma como assumia a obediência, etc., mostram-no bem ligado à sua geração.

 

Foi certamente esse enraizamento existencial e histórico que lhe permitiu ser tão moderno e hoje, que podemos perspetivar historicamente os grandes acontecimentos da década de 60, vemos como o Concílio Vaticano II ocorre em paralelo com outros grandes acontecimentos da civilização laica de ímpeto renovador, como o maio de68, aluta dos povos pela autonomia, os movimentos de emancipação das mulheres e até uma mudança de paradigma da racionalidade.

 

João XXIII e a Pacem in Terris

Mas João XXIII é, igualmente, Pacem in Terris, a sua última Encíclica (8ª), de 11 de abril de 63, nas vésperas da sua morte.

Fr. Irénée Rezende Guimarães, num texto de 20126, interroga-se sobre as razões que poderão ter levado um Papa moribundo a escrever esta Encíclica no final do seu pontificado, enunciando 4 razões essenciais:

 Le contexte international

 l’engagement des papes pour la paix

 le développement de la conscience mondiale pour la paix

 et la propre personnalité de Jean XXIII.

Na sequência do que tenho vindo a dizer, gostaria de destacar a 3 e a 4 para sublinhar de novo a mesma ideia: por um lado, a sintonia de João XXIII com o seu tempo e, por outro, a sua capacidade de lhe dar corpo em termos espirituais e cristãos. Quero destacar, quatro elementos para mim mais significativos dentro da perspetiva que tenho vindo a defender:

1. A quem é endereçada a Encíclica

a. Para além dos destinatários habituais, é endereçada a todas as pessoas de boa vontade, coisa que representa uma novidade (cf Fr Irenée

Guimarães)

2. O subtítulo da Encíclica: A PAZ DE TODOS OS POVOS NA BASE DA VERDADE, JUSTIÇA, CARIDADE E LIBERDADE. Aqui gostaria de sublinhar o facto de a justiça vir antes da caridade que me parece extremamente importante.

3. O paralelismo entre a primeira parte da Encíclica e os direitos humanos proclamados em 48.

a. A afirmação inicial é: Todo ser humano é pessoa, sujeito de direitos e deveres

E acrescenta isto é, natureza dotada de inteligência e vontade livre. Por essa razão, possui em si mesmo direitos e deveres, que emanam direta e simultaneamente de sua própria natureza. Trata-se, por conseguinte, de direitos e deveres universais, invioláveis, e inalienáveis.

b. A lista dos direitos

Direito à existência e a um digno padrão de vida

Direitos que se referem aos valores morais e culturais

Direito de honrar a Deus segundo os ditames da reta consciência

Direito à liberdade na escolha do próprio estado de vida

Direitos inerentes ao campo econômico

Direito de reunião e associação

Direito de emigração e de imigração

Direitos de caráter político

4. Finalmente, “os sinais dos tempos”, que finaliza a primeira parte da Pacem in Terris. A este nível, creio ser importante comentar dois aspetos: (1) a própria expressão; (2) o conteúdo que cobre na Encíclica.

 

Os sinais dos tempos

No meu entender, assumir a ideia de que os tempos – ou seja, o desenvolvimento histórico da humanidade no seu labor próprio – emitem sinais que devem ser tidos em conta para a nossa ação é a expressão mais evidente de que se considera que o mundo tem sentido em si mesmo. É o filósofo Hegel que melhor nos ajuda a compreender o que está em jogo. Para este filósofo, que tinha 20 anos quando se deu a Revolução Francesa, o desenvolvimento da humanidade era determinado por uma dinâmica interior à própria realidade, dinâmica essa que explicava as mudanças culturais e históricas e, portanto, o progresso humano. Nesse sentido, para ele, cada Época era o resultado de uma evolução racional e explicada por ela. Por outro lado, cada Época tinha os seus protagonistas – aquelas pessoas que estando atentas ao pulsar da realidade davam corpo àquilo de que essa realidade estava prenhe e, por isso, eram capazes de a conduzir a um estádio superior de desenvolvimento. Hegel falava de Espírito do tempo. João XXIII de sinais dos tempos, mas, parece-me possível pensar que ambos estavam a falar da mesma coisa – da capacidade humana de construir humanidade e de fazer avançar. Não sei se João XXIII estudou a filosofia de Hegel ou se lhe bastou o seu amor a Deus e a sua escuta do Mundo para compreender que valia a pena ter em conta aquilo que no Mundo ia acontecendo e integrá-lo numa visão mais ampla sustentada por um horizonte de transcendência. Em qualquer caso, não tenho muitas dúvidas de que Hegel o consideraria um protagonista do seu tempo, ou seja, alguém atento à evolução da realidade e disposto a levá-la por diante.

 

O conteúdo selecionado por João XXIII

Como sabemos, são 3 os destaques da Encíclica:

 a gradual ascensão económico-social das classes trabalhadoras

 o ingresso da mulher na vida pública

 o movimento de emancipação dos povos

Ou seja, o que o Papa João acolheu foi aquilo que à partida seria mais perturbador por ser o que alterava de maneira mais profunda a realidade e os valores estabelecidos. Isso não lhe fez medo, pelo contrário, foi esse novo interpelador que quis pensar e contextualizar dentro do seu horizonte espiritual e dos seus valores cristãos. Essa decisão de acolhimento e integração abalou completamente a clausura da Igreja e se

acreditarmos – como canta Chico Buarque – que “ninguém volta ao que acabou”, podemos ter a esperança de que o seu gesto de aceitar o valor da modernidade continue a germinar e dar frutos, mesmo que não cheguemos a colhê-los pessoalmente.

 

1 Cf. Mario de França Miranda, O CONCÍLIO VATICANO II OU A IGREJA EM CONTÍNUO AGGIORNAMENTO.

2 Votada definitivamente em 7 de Dezembro de 1965, em que se registaram 2309 votos favoráveis, 75 contrários e 7 nulos.

3 Jacques DUPUIS. O debate cristológico no contexto do pluralismo religioso. In: Faustino TEIXEIRA (Org.) Diálogo de pássaros. São Paulo, Paulinas, 1993, p. 79.

4 Victor Codina, HACE 50 AÑOS HUBO UN CONCILIO… SIGNIFICADO DEL VATICANO II, Cuadernos, 162. O VATICANO II, UM CONCÍLIO EM PROCESSO DE RECEPÇÃO, Persp. Teol. 37 (2005) 89-104.

Pe. Pedro Guimarães Ferreira, S.J.,” O “diário” de João XXIII”, Separata da Revista Verbum, tomo XXXII, fasc 2, 1976.

6 fr. Irénée Rezende Guimarães OSB, Pourquoi Jean XXIII a écrit « Pacem in Terris » ? Le contexte d’une encyclique et ses lignes maîtresses.

 

Fonte: https://ia801707.us.archive.org/6/items/Joao23/HomenageandoJooXxiii.pdf publicado no blogue do Nós Somos Igreja http://nsi-pt.blogspot.pt/


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