ESPAÇO DE ENCONTRO E REFLEXÃO ENTRE CRISTÃOS HOMOSSEXUAIS em blog desde 03-06-2007
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publicado por Riacho, em 30.03.09 às 20:56link do post | favorito
Olá
Aqui está um artigo muito equilibrado, publicado hoje no jornal Público, sobre os papeis dos pais e um bom contributo para a discussão da adopção por casais homossexuais.
Abraço
Carlos
Reino Unido vai permitir que as mulheres que recorrem a técnicas de procriação medicamente assistida possam indicar uma mulher como pai
Mãe há só duas 
29.03.2009 - 09h02 José Vitor Malheiros
Em português torna-se tudo muito mais complicado. Dizemos “pais” para falar do par formado pelo pai e pela mãe. Também dizemos “pais” para falar dos homens que têm filhos. Em espanhol é a mesma coisa, uma confusão. Em francês ou inglês há menos confusões: parents (a mesma grafia nas duas línguas) é o conjunto do pai e da mãe. Quando falamos do papel dos pais, dos direitos dos pais ou das responsabilidades dos pais, em português, ninguém se entende, a menos que de vez em quando se especifique: “Aqui estou a falar de pais-fathers.” “Agora estou a falar de pais-parents.”

É estranho que não se tenha adoptado um termo mais específico para representar algo tão importante como este par. Mas talvez não seja estranho: há em “pais” uma sub-reptícia reivindicação de poder masculino, como se o pai quisesse chamar a si, para a autoridade paternal, aquilo que é a autoridade parental, o poder dos dois pais. Um reflexo do “cabeça de casal”, do “chefe de família”.

Mas onde a língua choca violentamente com a realidade é quando, como acontece nos casais de duas mulheres lésbicas que têm filhos – por adopção, inseminação artificial, fertilização in vitro, fruto de uma relação heterossexual de uma delas –, os “pais” são duas mães.

A situação está longe de ser nova. Países como a Espanha, Holanda, Bélgica, Suécia, Noruega, Dinamarca, Canadá ou Reino Unido permitem a adopção de crianças por casais do mesmo sexo, alguns já há vários anos. E, a partir da próxima sexta-feira, o Reino Unido vai passar a permitir que as mulheres que recorrem a técnicas de procriação medicamente assistida (PMA), indiquem como “o outro pai (parent)” indistintamente um homem ou uma mulher. Vários outros países já o permitiam, mas a nova lei britânica, que entra em vigor no país que inventou a fertilização in vitro, vai ser mais um forte argumento de pressão para os que defendem a igualdade de direitos parentais entre casais hetero e homossexuais.

Mas, se há assunto que suscita paixões e argumentos arrebatados, é o dos direitos parentais dos homossexuais, mesmo que individualmente considerados, e – ainda mais – dos casais homossexuais. A prova disso é como, mesmo pessoas (e organizações) que defendem o casamento homossexual, param na fronteira da concessão dos direitos de adopção ou de recurso à PMA a casais do mesmo sexo. Não há muitos assuntos que nos interpelem tanto e sobre os quais receemos tanto decidir, como sociedade. Pelo que significam de alteração de papéis que nos habituámos a ouvir dizer que constituíam as fundações da nossa sociedade (e quem é que quer abanar as fundações da sociedade?) e pelos riscos que não estamos dispostos a fazer correr as nossas crianças. E, se há nos dois extremos “conservadores” e “liberais” com convicções definidas, há também, no meio, imensa gente que, mesmo quando é mais sensível a argumentos de um dos lados, se sente incapaz de tomar uma decisão. É particularmente curioso como muita gente que favorece os direitos dos homossexuais nesta matéria diz mais facilmente “penso que é algo que vai acabar por acontecer” do que avança uma declaração de apoio sem ambiguidades.

É o peso do argumento da “evolução natural” a fazer-se sentir. O receio de brincar a Deus ou aos engenheiros sociais. Mas não empurramos tantas vezes, para a frente ou para o lado, essa evolução natural das coisas e da sociedade?

“A criança fruto da procriação medicamente assistida deve ser encarada como um fim em si mesmo e um dom a acolher, não como um objecto que se reivindica ou um instrumento ao serviço de fins que a ultrapassam”, diz Pedro Vaz Patto, juiz e membro da Comissão Nacional Justiça e Paz, organismo laico da Conferência Episcopal Portuguesa. “E o bem dessa criança exige que nasça no contexto o mais possível próximo do que se verifica com a procriação natural. Impõe-se garantir não que ela vá ser criada num qualquer contexto possível, mas naquele contexto que para ela é o melhor. E isso deve ser garantido. Não podemos aceitar experimentalismos sociais, a criança não pode ser objecto de experiências mais ou menos vanguardistas ou correr riscos que poderão ser fatais. Não se trata de ser conservador, trata-se de aplicar um princípio de precaução que neste âmbito se justifica mais do que em qualquer outro.”

Apesar do que diz Vaz Patto, este é o argumento conservador por excelência, mas não é por isso que ele deve pesar menos. Pelo contrário, se há domínio onde a prudência, a escolha de soluções conhecidas e a recusa de riscos parece imperativa deve ser este. O argumento conservador parece aqui de grande sensatez.

Só que, quando a lei permite este tipo de soluções, ela não está a ser vanguardista ou experimentalista. A realidade é que há muitas crianças que vivem já e há muitos anos com pais homossexuais – ou com um progenitor biológico e o seu companheiro (ou companheira) ou nasceram já no âmbito de uma relação homossexual. Segundo dados do Gabinete de Recenseamento dos Estados Unidos (US Census Bureau), havia em 2005 nos EUA 270.313 crianças a viver com casais formados por pessoas do mesmo sexo. Vinte por cento dos casais de gays ou lésbicas tinham crianças a seu cargo (menores de 18 anos). E estimava-se que 65.000 crianças adoptadas vivessem com um pai (parent) homossexual. Em 2000, o número de casais do mesmo sexo recenseados nos EUA era superior a 770.000. Surpreendente? Talvez, mas trata-se de dados que muita gente prefere ignorar.

O psiquiatra Afonso de Albuquerque, no seu livro Minorias Eróticas e Agressores Sexuais, no capítulo intitulado “Os homossexuais como pais” refere que – “apesar de a relação homossexual não ser reprodutiva, cerca de 25 % dos homens gay e uma percentagem ainda mais elevada de lésbicas (65 %) têm filhos”. Muitos destes são fruto de relações heterossexuais anteriores ou relações ocasionais concomitantes, mas um número crescente destas crianças são fruto de PMA.

O que é que isto quer dizer? Que a lei, mesmo quando parece avançada e mesmo quando é objecto de contestação, não está a fazer engenharia social, mas sim a enquadrar situações que existem no terreno e que até nem são tão raras como se pensa. Isto não significa que elas devam ser aceites por esse facto – há comportamentos que a sociedade reprova e que não vai legalizar apenas pelo facto de serem comuns. Mas significa que um dos argumentos mais vezes avançados contra as leis socialmente mais liberais – o de que vão abrir uma caixa de Pandora com consequências imprevisíveis – não tem muitas vezes razão de ser. A caixa de Pandora, se existe, já foi aberta há muito e ninguém reparou.

Há outra coisa que decorre da abundância de situações deste tipo: houve tempo para realizar estudos e estudos com grupos de dimensão razoável e com um recuo temporal considerável – nomeadamente estudos sobre jovens adultos que cresceram em casas onde os pais eram duas pessoas do mesmo sexo (dois pais, duas mães) e que permitem extrair conclusões sobre o seu desenvolvimento geral e sobre uma das grandes interrogações: estes pais influenciam de alguma forma a identidade e a orientação sexual dos seus filhos?

“Há muitos estudos feitos desde os anos 70, tanto no Reino Unido como nos Estados Unidos, sobre o desenvolvimento das crianças educadas por casais do mesmo sexo”, diz-nos Susan Golombok, directora do Centro de Investigação sobre a Família da Universidade de Cambridge e uma das autoridades mundiais em famílias lésbicas. “Nessa altura não se sabia nada sobre isto e estes estudos foram desencadeados por casos judiciais de custódia de crianças em casos de divórcio. Mais tarde, com a difusão do recurso a PMA por parte de casais de lésbicas, houve uma proliferação de estudos. E a verdade é que estas crianças – e estes jovens, porque nós seguimos as crianças até à idade adulta – não apresentam diferenças significativas em relação a quaisquer outras do ponto de vista do bem-estar psicológico, do comportamento, do ponto de vista do desenvolvimento do género, da identidade de género, quer, especificamente, do ponto de vista da sua orientação sexual. Não há mais homossexuais entre os jovens que foram educados por um casal homossexual do que na população em geral.”

O que Susan Golombok encontrou nestes jovens, na adolescência, foi uma maior disponibilidade que na população em geral para a experimentação sexual com parceiros do mesmo sexo – “um encontro, uma noite” –, o que parece ser atribuível a um ambiente menos repressivo em relação a essas práticas. Mas a orientação sexual destes jovens não apresenta desvios em relação aos padrões da população geral.

Muitos homossexuais minimizam a questão – “e se houvesse mais homossexuais qual seria o problema?” perguntam –, mas essa é de facto uma das questões candentes. O que parece é que, da mesma maneira que crescer numa família tradicional não faz com que os filhos sejam heterossexuais, ser educado por duas mães lésbicas não faz das crianças homossexuais.

“Uma coisa que é muito curiosa é que, mesmo do ponto de vista dos comportamentos associados ao género”, diz Golombok, “como os rapazes brincarem com pistolas e as meninas com bonecas e coisas assim, apesar de algumas das mães lésbicas tentarem contrariar de forma muito activa esses comportamentos típicos do género, não encontrámos diferenças significativas ante a população geral. A atitude das mães não fez diferença. Em geral considera-se que os rapazes precisam de um modelo do pai para seguir e as raparigas do modelo da mãe. A verdade é que não encontramos provas científicas de que um rapaz seja menos masculino quando é educado apenas por uma mãe ou por duas mães lésbicas.”

Como se explica isso? Golombok responde cautelosamente: “A verdade é que os pais (parents) não fazem grande diferença em termos do desenvolvimento do género nos filhos. Há muitas outras influências além da família nuclear que são importantes, a escola, a comunidade…”

Será possível? Os pais (parents) não são tão importantes como pensamos e os pais (fathers) têm tão pouca importância que, quando os descartamos por completo (por exemplo, nas famílias lésbicas), não parece acontecer nada de catastrófico aos filhos? O que é que isto diz aos pais-fathers (como eu)?

A verdade é que andámos a ouvir durante tantos anos que o papel do pai era basilar na família e que representávamos um papel que mais ninguém podia representar, que acabámos por acreditar mas… será mesmo assim?

Aprendemos que ao pai cabia o papel severo (e perseverante), administrador de disciplina, e que a mãe era a provedora de carinho. Que o pai preparava com rigor os filhos para o futuro e que a mãe os apoiava com amor no presente. Que o pai tinha a manápula de ferro e a mãe a luva de veludo. Já não será assim?

De facto, parece que já não é – ainda que as referências literárias perdurem. Se algo mudou no último século, foi a família e Freud teria de reescrever boa parte da obra, se ressuscitasse neste século XXI.

O papel social das mulheres mudou drasticamente e com ele o seu papel na família e com ele o papel dos homens e toda a dinâmica familiar e até o pathos. A mulher passiva, dócil e doméstica é hoje activa, assertiva e profissional. E se o papel do homem na família estava intimamente ligado à sua função de provedor do sustento e à sua autoridade natural devido à superioridade masculina… é natural que esse papel também tenha mudado.

“Se para Freud a criança precisa de uma mãe/mulher e de um pai/homem, clínicos posteriores defendem que a criança tem necessidades de sobrevivência, de afecto e lúdicas e de uma ou mais pessoas a quem se ligue. Há imensa investigação a comprovar estas afirmações”, diz a psicóloga clínica Margarida Gaspar de Matos. “Quando pensamos em ‘desvios’ das famílias idealizadas, se quisermos ser analíticos, ficamos sem saber se os potenciais problemas que os filhos possam apresentar não serão devidos ao estatuto ‘desviante’ dessa família. Quem nos diz que não são consequência da escola, da rua, dos amigos, do regime político, do século ou do país em que nasceram?”

De facto, de um certo ponto de vista – como alguém que passou toda a sua vida numa família, penso que isso me qualifica pelo menos como observador interessado –, as famílias não parecem ter mudado radicalmente, porque continuam a ocupar o seu papel, mas cumprem-no hoje de forma muito diferente do que faziam no passado. E muitos dos modelos de família actuais seriam certamente considerados desviantes e geradores de patologia há um século. Hoje há famílias tradicionais onde o pai cozinha e a mãe trata dos computadores e do carro.

Mas será que daí se pode passar para uma família sem pai? O que pode um pai pensar disso?

É verdade que já há (sempre houve e hoje há mais ainda) famílias sem pais (e crianças criadas apenas pela mãe ou pela avó), mas nenhum pai pode imaginar sair de cena sem experimentar uma profunda sensação de perda – para si e para os seus filhos. Há uma morte simbólica do pai. Imaginar a nossa família sem nós não pode deixar de ser uma experiência de luto e é isso que alguns homens sentem ao imaginar-se excluídos do quadro onde sempre estiveram – e onde por vezes se imaginam ao centro, com a mão na espada e o olhar no horizonte. Mas a questão é que não se trata de expulsar do paraíso doméstico os homens que lá estão. A questão é simplesmente a de imaginar e construir outros universos domésticos onde não há homens. E o mesmo se poderia dizer das mães.

Mas então os pais (fathers) não são importantes?

“Os pais (fathers) são importantes pela mesma razão que as mães são importantes: pelo afecto”, responde Golombok. “A qualidade da relação (parenting) é que é importante. O género é secundário.”

Mas a quem cabe nesse caso o papel de pai? A pergunta é difícil de responder porque… talvez não haja um papel específico de pai. Quem vai ensinar o filho a pescar, a fazer a barba, a dar o nó da gravata? Quem souber e quem lá estiver. O papel de pai (father) é apenas aquele que eu faço quando sou pai (parent). E, se as famílias vêm em diferentes formatos, os pais também. Há pais que não pescam, se cortam sempre ao fazer a barba e não sabem dar nós de gravata. E, no que diz respeito às coisas realmente importantes, acompanhar, apoiar, incentivar, ouvir, acarinhar, aconselhar, ensinar, alguém duvidará que as mulheres as fazem igualmente bem?

“Diz-se que as crianças precisam de um pai e de uma mãe para ter modelos femininos e masculinos da sociedade, mas esses modelos foram criados por esta mesma sociedade e nada nos diz se são bons para o crescimento harmonioso do criança”, diz Margarida Gaspar de Matos. “Não está escrito em lado nenhum, nem há qualquer investigação que permita concluir que a criança que cresça a observar a mãe na cozinha e o pai a ver futebol fique melhor ou pior do que outra que vê a mãe na cozinha e a outra mãe a ver futebol, o pai na cozinha e o outro pai a ver futebol, o pai na cozinha e a mãe a ver futebol ou os dois na cozinha ou os dois a ver futebol ou qualquer outra combinação. Mas o mesmo não se pode dizer da criança que vê o pai a bater na mãe, o pai a espancar os irmãos, a mãe a bater no pai, a mãe a bater na outra mãe…”

Mas há comportamentos de género, apesar de tudo os homens e as mulheres não são iguais. Não é conveniente para uma criança ter um homem na família?

“As pessoas não são criadas apenas pela família próxima”, diz Paulo Corte-Real, presidente da Associação ILGA Portugal-Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual e Transgénero. “Há a rede familiar alargada, os amigos e amigas, a escola, a sociedade em geral e todos os modelos estão aí representados. Será que podemos dizer que uma criança que é criada só pela mãe não sabe que é um homem?”

Os trabalhos de Golombok têm alimentado alguma controvérsia, mas ela é mais devida às posições pessoais dos vários intervenientes na discussão do que à análise dos dados. Os dados, esses, parecem apontar de forma consistente para a conclusão de que os pais homossexuais – individualmente considerados ou aos pares – não são piores para as crianças que os heterossexuais.

“Aquela visão de sonho da família idealizada: um par heterossexual, duas pessoas jovens, bonitas, saudáveis, cultas, sofisticadas, bem formadas, que adoram os filhos, que nunca perdem a paciência, que nunca se zangam, que nunca se enganam, que nunca erram, que nunca se cansam – os YAVIS, Young, Attractive, Valuable, Inteligente and Sophisticated – não são a maioria das famílias e, se calhar, nem são nenhuma família, face a um olhar mais profundo”, diz Margarida Gaspar de Matos. “Não há famílias ‘excelentes’. A argumentação à volta da competência pessoal, afectiva, e social de um casal homossexual na educação de um filho parte unicamente de vários preconceitos e estereótipos que não resistem a uma observação mais profunda.”

Há outro aspecto já referido de passagem, mas que merece uma atenção mais profunda no caso de crianças filhas de duas mulheres: a pressão social. Mesmo que a sua vida familiar seja cheia de afecto e segurança, estimulante e equilibrada, o olhar dos outros, a censura, a discriminação não podem ser origem de sofrimento para as crianças?

“Penso que o único problema que surge no caso de os pais terem o mesmo sexo é mesmo a pressão social que se exerce sobre os pais e a criança”, diz Margarida Gaspar de Matos. “Esse peso da norma e da discriminação não é menosprezável e até pode ser muito invasivo. Só que o problema não está na identidade ou orientação sexual dos cuidadores, mas na energia que a criança tem de despender face a um ambiente hostil e culpabilizador.”

A investigação de Susan Golombok também encontrou problemas nesta área.

“Uma família não tradicional pode experimentar mais dificuldades, ser objecto de discriminação”, diz a investigadora de Cambridge. “Mas isso depende muito do ambiente onde vive, se vive numa zona rural muito tradicional ou numa grande cidade, por exemplo. A família não vive num vácuo social. Na nossa investigação, uma das coisas que estudávamos era o bullying a que as crianças poderiam ter sido submetidas devido à sua situação familiar. As crianças não relatavam mais episódios de bullying que as outras. Mas quando as interrogámos passados uns anos, relatavam mais casos de provocações dos colegas durante a adolescência a propósito não da orientação sexual das suas mães, mas da sua própria orientação sexual.”

A discriminação social, porém, dificilmente pode justificar uma atitude de obstáculo à parentalidade de casais de gays ou lésbicas. Se assim fosse, o mesmo princípio, em nome da protecção dos interessados contra a crítica, poderia ser usado para proibir qualquer situação que pudesse ser objecto de censura social. Estaríamos a somar uma agressão a outra.

Mas essa discriminação social pode estar a desvanecer-se.

“Os mais jovens têm posições mais abertas”, diz Rui Nunes, director do Serviço de Bioética e Ética Médica da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e presidente da Associação Portuguesa de Biotética. “A sociedade portuguesa está progressivamente a aceitar o casamento entre pessoas do mesmo sexo e tenho poucas dúvidas de que, depois do casamento, virá a adopção e a PMA. É provável que o curso dos acontecimentos em Portugal seja semelhante ao que aconteceu no Reino Unido. Mas ainda faltam estudos que iluminem de uma forma clara algumas questões, já que o que está em causa são os direitos da criança e temos de aplicar o princípio da precaução. É preciso comprovar os estudos já existentes que parecem apontar que, para o desenvolvimento harmonioso de um ser humano do ponto de vista psicológico, familiar, relacional, não é necessário um casal de duas pessoas de sexo oposto e que é o amor que é fundamental e não o género. Se isso acontecer, não creio que haja fundamento ético para impedir o recurso de casais do mesmo sexo quer à PMA, quer à adopção.”

A ILGA também deseja que o casamento, a adopção e a PMA passem a ser acessíveis aos casais gays e lésbicos e está preocupada com o que Paulo Corte-Real considera uma situação de total desprotecção dos pais homossexuais. “Em Portugal não há adopção por casais do mesmo sexo e a PMA exclui mulheres solteiras e casais de lésbicas”, diz Corte-Real. “Apenas podem fazer uma inseminação mulheres casadas ou em união de facto com um homem. O que acontece é que muitas portuguesas vão a Espanha para fazer a inseminação artificial.”

Uma vez em Portugal, porém, se a mãe biológica consta nos documentos como mãe, o outro elemento do casal não tem existência legal na família e, oficialmente, não tem quaisquer direitos sobre a criança.

Seria fácil aprovar em Portugal uma lei como a que entra em vigor esta semana no Reino Unido? António José Fialho, juiz do Tribunal de Família e Menores do Barreiro, que prefere não se pronunciar sobre a matéria substantiva da lei britânica, diz que do ponto de vista jurídico não seria complicado, ainda que isso obrigasse a uma série de alterações. “A lei portuguesa, no que respeita à filiação, baseia-se num princípio que é a prevalência da verdade biológica. E considera que só há geração de família a partir de um casal formado por duas pessoas de sexos diferentes. O pai biológico é sempre um homem, não pode ser uma mulher. E não pode haver duas mães”, diz António José Fialho. “Ora a lei britânica está em conflito com a verdade biológica. Para adoptar algo de semelhante em Portugal seria preciso mudar muitas coisas no Código Civil, relativamente à adopção, à maternidade e à paternidade. Quanto à Constituição, penso que não haveria alterações a fazer, pois possui abertura para acolher todas as soluções. Mas também é verdade que existem já excepções a esse princípio da verdade biológica. É o caso da mulher que se submete a uma inseminação artificial com dador mas declara que o pai da criança que nasce é o marido ou os casos de adopção, onde os pais legais não são os pais biológicos.”

Enquanto o debate não se generaliza e os políticos não abordam a questão legislativa, e independentemente da opinião que cada um tenha, é importante lembrarmo-nos de uma coisa: casais de homens gays e de mulheres lésbicas já existem. Homossexuais sós que vivem com um ou mais filhos, biológicos ou não, também. Casais de mulheres ou de homens com um ou mais filhos, filhos biológicos de um deles ou adoptados, também existem. O que se irá discutir um dia é apenas como lhes vamos chamar e se o seu estatuto será assumido com honestidade pelo resto da sociedade, ou se teremos de continuar a encontrar eufemismos para falar da situação familiar destas pessoas que vivem à nossa volta, que são os nossos familiares, os nossos colegas, os nossos amigos, os nossos pais e os nossos filhos.

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