ESPAÇO DE ENCONTRO E REFLEXÃO ENTRE CRISTÃOS HOMOSSEXUAIS em blog desde 03-06-2007
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publicado por Riacho, em 27.07.14 às 11:41link do post | favorito

Torrazeta, Itália, 2006

 

Hoje, 27 de Julho de 2014, terceiro aniversário da partida do nosso João, que recordamos com muita amizade e carinho republicamos o texto que José António de Almeida escreveu em sua memória:

 

IN MEMORIAM

JOÃO NORONHA E CASTRO

1954 - 2011

Havia no João uma invencível alegria. “Sou o homem mais feliz do mundo” foi uma das últimas frases que lhe ouvi, a poucos dias do fim. Fazia sempre, durante todo o longo período em que deu combate ao cancro, uma distinção entre as dores físicas que sentia e uma imensa reserva de alegria interior. Conheci o João na Capela do Rato, onde a sua presença resplandeceu, com muita graça e sábias palavras, nas reuniões do pequeno grupo de católicos de condição homossexual em que começou a tomar parte a partir de 2005 e que frequentou até à dissolução do grupo em 2008. Alto, robusto, de cabeça rapada, a sua pêra e bigode lembravam, sem que ele todavia o mencionasse, as célebres barbas de D. João de Castro, o lendário vice-rei da Índia, de quem era, por linhagem, descendente. Contagiado pelo entusiasmo e militância do João, foi na terna e fraterna companhia dele que participei, pela primeira vez, na Marcha Gay de Lisboa. Já muitíssimo debilitado pela doença, ainda manifestou a vontade de ir à Marcha, e sem ser difícil foi necessário  dissuadi-lo do desejo de concretizar tal propósito. Arquitecto por profissão, entre outras numerosas obras, projectou com grande beleza na Abrigada, perto de Alenquer, a título quase gratuito e conforme à sua enorme generosidade, dois edifícios numa cidadela do Movimento dos Focolares, movimento de inspiração cristã fundado por Chiara Lubich. Abrigada, a terra muitas vezes evocada que conserva algumas raízes do seu clã familiar, valor que cultivava. Tinha pela mãe um amor desmesurado e impossível de descrever. A ligação profunda que mantinha com o seu querido Francisco, desde tempo anterior ao momento em que nos conhecemos, nunca falhou e dela posso e devo dar testemunho. Vinha de muito longe, resistiu à provação da doença e foi fonte de consolação até ao minuto derradeiro. “Ontem, na cama, recebi um abraço tão forte”, “passei a noite a conversar com ele” e outras frases do género foram partilhadas com muitos de nós, seus amigos, em casa ou no hospital. Uma ligação firme e duradoira que soube enfrentar, posso dizê-lo, embora pareça indiscreto da minha parte, todos os cenários da vida sexual do João. Alguns namorados de ocasião, ao princípio, não compreendiam nem encaixavam o assunto muito bem. Depois, rapidamente, passavam a aceitar e até a olhar com respeito uma ligação tão antiga, fiel e verdadeira. Mas também com outras relações, de curso mais demorado, jamais houve, que eu saiba, um problema sério por causa disso. E acredito mesmo  que essa ligação entre o João e o Francisco, apesar da morte e até por causa da morte, é agora mais viva e forte do que nunca, pois o Francisco - como o João sempre lhe chamava, com aquela simplicidade que era timbre dos dois, sem jamais ostentar o título honroso do seu amigo e companheiro de toda a vida -, o Francisco que sempre o João trazia nos lábios com um sorriso e de quem nos falava de forma constante como é costume de quem muito ama, esse bondoso Francisco, canonicamente, responde também pelo nome, só um pouquinho mais comprido, de São Francisco de Assis. E vejo-o, de perfil, ao lado da sua cama. Até sempre, passarinho.

 

José António Almeida

 

Texto publicado na Time Out nº 204 de 24-08-2011


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publicado por Riacho, em 26.07.12 às 20:59link do post | favorito

                                                Torrazeta, Itália, 2006


Hoje, 27 de Julho de 2012, primeiro aniversário da partida do nosso João, que recordamos com muita amizade e carinho republicamos o texto que José António de Almeida escreveu em sua memória:


IN MEMORIAM

JOÃO NORONHA E CASTRO

1954 - 2011

Havia no João uma invencível alegria. “Sou o homem mais feliz do mundo” foi uma das últimas frases que lhe ouvi, a poucos dias do fim. Fazia sempre, durante todo o longo período em que deu combate ao cancro, uma distinção entre as dores físicas que sentia e uma imensa reserva de alegria interior. Conheci o João na Capela do Rato, onde a sua presença resplandeceu, com muita graça e sábias palavras, nas reuniões do pequeno grupo de católicos de condição homossexual em que começou a tomar parte a partir de 2005 e que frequentou até à dissolução do grupo em 2008. Alto, robusto, de cabeça rapada, a sua pêra e bigode lembravam, sem que ele todavia o mencionasse, as célebres barbas de D. João de Castro, o lendário vice-rei da Índia, de quem era, por linhagem, descendente. Contagiado pelo entusiasmo e militância do João, foi na terna e fraterna companhia dele que participei, pela primeira vez, na Marcha Gay de Lisboa. Já muitíssimo debilitado pela doença, ainda manifestou a vontade de ir à Marcha, e sem ser difícil foi necessário  dissuadi-lo do desejo de concretizar tal propósito. Arquitecto por profissão, entre outras numerosas obras, projectou com grande beleza na Abrigada, perto de Alenquer, a título quase gratuito e conforme à sua enorme generosidade, dois edifícios numa cidadela do Movimento dos Focolares, movimento de inspiração cristã fundado por Chiara Lubich. Abrigada, a terra muitas vezes evocada que conserva algumas raízes do seu clã familiar, valor que cultivava. Tinha pela mãe um amor desmesurado e impossível de descrever. A ligação profunda que mantinha com o seu querido Francisco, desde tempo anterior ao momento em que nos conhecemos, nunca falhou e dela posso e devo dar testemunho. Vinha de muito longe, resistiu à provação da doença e foi fonte de consolação até ao minuto derradeiro. “Ontem, na cama, recebi um abraço tão forte”, “passei a noite a conversar com ele” e outras frases do género foram partilhadas com muitos de nós, seus amigos, em casa ou no hospital. Uma ligação firme e duradoira que soube enfrentar, posso dizê-lo, embora pareça indiscreto da minha parte, todos os cenários da vida sexual do João. Alguns namorados de ocasião, ao princípio, não compreendiam nem encaixavam o assunto muito bem. Depois, rapidamente, passavam a aceitar e até a olhar com respeito uma ligação tão antiga, fiel e verdadeira. Mas também com outras relações, de curso mais demorado, jamais houve, que eu saiba, um problema sério por causa disso. E acredito mesmo  que essa ligação entre o João e o Francisco, apesar da morte e até por causa da morte, é agora mais viva e forte do que nunca, pois o Francisco - como o João sempre lhe chamava, com aquela simplicidade que era timbre dos dois, sem jamais ostentar o título honroso do seu amigo e companheiro de toda a vida -, o Francisco que sempre o João trazia nos lábios com um sorriso e de quem nos falava de forma constante como é costume de quem muito ama, esse bondoso Francisco, canonicamente, responde também pelo nome, só um pouquinho mais comprido, de São Francisco de Assis. E vejo-o, de perfil, ao lado da sua cama. Até sempre, passarinho.

 

José António Almeida

 

Texto publicado na Time Out nº 204 de 24-08-2011

 

 


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