ESPAÇO DE ENCONTRO E REFLEXÃO ENTRE CRISTÃOS HOMOSSEXUAIS em blog desde 03-06-2007
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publicado por Riacho, em 14.11.10 às 23:32link do post | favorito

O texto é de Raquel Moleiro do jornal Expresso e foi publicado neste semanário em 23-10-2010.

 

Júlio matou-se há dois meses após ser condenado por abuso sexual do sobrinho. Conversa de Messenger levanta dúvidas sobre veracidade da acusação. MP de Morgado tentou salvá-lo.

 

Júlio preparou minuciosamente a despedida durante ano e meio. Doou o recheio da sua casa em Algés a uma instituição de caridade, entregou o andar alugado, passou os negócios, para o melhor amigo, deu o carro a outro, aviou na farmácia uma receita de três caixas de Valium, comprou um bilhete só de ida para os EUA e escreveu um livro. Na obra, intitulada “Sem culpa”, relata a vida de David, um homem de 38 anos, engenheiro informático, homossexual, filho de uma família desestruturada do Cacém (Sintra), condenado em 2008 — pelo abuso sexual do sobrinho de três anos — a seis anos de prisão e ao pagamento de uma indemnização de 25 mil euros. No livro, o personagem de David é inocente, mas a Justiça afirma-lhe a culpa, da primeira instância até ao Tribunal da Relação. E, no fim, extintos os recursos, o acusado opta pelo suicídio.

 

O livro é uma autobiografia. Na vida real, David chamava-se Júlio Olivares. Matou-se com uma overdose de comprimidos no dia 1 de agosto, há cerca de três meses, no quarto de um hotel manhoso em São Francisco. De herança deixou ‘a sua verdade’ sobre o processo 1527/05.3TASNT, disponível na Internet (em semculpa.com.pt). À narrativa só falta o que se passou após a sua morte: Sílvio*, o sobrinho, agora com 14 anos, terá assumido numa conversa de Messenger (site de conversação em tempo real) que mentiu (ver texto ao lado). A confissão foi feita ao pai Miguel*, irmão de Júlio. “Menti pk meus tios precisavam do €e pk vocês me abandonaram”. Entregue à guarda dos tios maternos, após uma infância marcada pela toxicodependência da mãe e por sucessivas ausências laborais do pai (que acabou por perder a custódia e qualquer ligação ao filho), afirma que contou à Justiça o que “a tia mandou dizer”, que não sabia “k dava cana”, e falou dos “25 mil euros k tanto kustaram a  conseguir”. Miguel, 37 anos, gravou a conversa e com ela espera provar a  inocência do irmão. “Só isso importa. Por eu ter sido mau pai, o meu filho é agora um miúdo revoltado. Isto é uma vingança contra mim... Imagina a culpa que sinto?”, desabafa. Maria da Glória Canada, a advogada que defendeu Júlio, também continua no caso. Tornou-o uma causa pessoal. “Garanto-lhe que vamos até onde for possível. Estamos a preparar um recurso extraordinário, com base em novas provas, e outro processo contra quem gerou esta mentira”. Contactados pelo Expresso, os tios de Sílvio desmentem a conversa de Messenger. “Ele nunca pode ter dito isso. O processo já corria quando (o miúdo) veio morar connosco. Como poderíamos ter inventado tal coisa?”, explica Natália*. A tia diz ter a reprodução do diálogo e assegura que “ele nunca escreveu  que mentiu sobre os abusos”. Está, aliás, convicta de que Sílvio disse a verdade na Justiça: “Sempre que foi depor, e depois quando recebemos cartas do Júlio, jurou-me que não era invenção. E eu acredito nele”.

 

Juiz avisado do suicídio

O juiz Paulo Silva, que presidiu ao coletivo do Tribunal de Sintra, também acreditou. Como na maioria dos crimes sexuais, em que as testemunhas oculares se resumem ao abusador e ao abusado, as declarações do menino foram decisivas. “O menor depôs de forma sentida, sincera, clara e absolutamente coerente”, lê-se na sentença. Quanto ao arguido, “a negação dos factos não convenceu de forma nenhuma”. Mas Júlio quis ter a última palavra e na nota de suicídio, deixada junto ao corpo, colocou o juiz Paulo Silva como uma das quatro pessoas a avisar da sua morte. Na mesma folha A4, escrita em inglês, à mão com letra de máquina, havia mais três nomes: o namorado americano, o melhor amigo português e Maria José Morgado. Um ano antes do suicídio, Júlio começou a corresponder-se com o gabinete da procuradora — a Unidade Especial de Investigação da PGR. “Centenas de pessoas escrevem à dra. Maria José, porque têm dela a imagem da mulher que tudo consegue”, explica a procuradora Glória Alves, que juntamente com o inspetor da PJ Manuel Carvalho ficou com o dossiê Olivares. A diretora do DIAP não chegou a conhecer o caso — coincidiu com a doença e morte do marido, Saldanha Sanches. Havia pouco que fazer neste caso: o processo correra todos os trâmites do sistema judicial. Júlio foi informado dos procedimentos jurídicos para a revisão da sentença, mas passada essa ‘fase oficial’ não o largaram. As ameaças de suicídio eram demasiado credíveis. As conversas tornaram-se então mais pessoais, tendenciosas, para lhe incutir esperança. Já não eram o inspetor e a procuradora, eram o Manuel e a Glória a tentar prendê-lo à vida. Júlio já tinha tentado o suicídio aos 14 anos. O pai, alcoólico, batia-lhe. Aos 18 anos sai de casa, vai trabalhar em contabilidade mas logo cria uma empresa e volta a estudar, até à licenciatura em engenharia informática. Lança vários sites de compras e fóruns (ligados à comunidade gay), tornando-se um webmaster econhecido. Em maio de 2006, é a PJ que o informa da acusação do sobrinho, que já não vê há anos. Alguns desacertos tinham-no afastado do irmão e, consequentemente, de Sílvio. A inspetora pergunta-lhe se é homossexual. Ele confirma. Sai de lá com Termo de Identidade e Residência. Júlio é condenado em Outubro de 2008, e recorre. Escolhe esperar o resultado nos EUA, em São Francisco, onde viverá longos meses com curtos regressos a casa. Decidido que estava a suicidar-se caso a pena se mantivesse, não queria morrer em Portugal. Escreveu então a todos os intervenientes do processo e ao Presidente da Republica, primeiro-ministro, presidente do Supremo Tribunal, diretor da PJ, PGR, por mail, carta ou posts no seu blogue de acesso restrito — “já que a única coisa que me preocupa nestes dias é deixar palavras por dizer”.

 

Escrever e morrer nos EUA

A 6 de outubro de 2009, a Relação de Lisboa dá como improcedente o recurso. Nesse mesmo dia, Júlio senta-se na ‘sua’ mesa do Starbucks, na Castro Street com a 18th, e começa a escrever o livro, 123 páginas non stop. A obra, que se queria póstuma, foi publicada antes da morte. Júlio admitiu no blogue que ainda tinha esperança. “Vivo os meus últimos dias num vazio, desolado com a justiça que não chegou. Embora não tenha sido esse o propósito, pensei que o livro apoquentasse consciências”. Foi por essa altura que Miguel, o irmão, encontrou Júlio na Internet. Não sabia dele desde o julgamento. “Durante um mês tentei tudo para que não se matasse”. Foi à PGR duas vezes mas não o receberam. À terceira disse que tinha uma bomba, foi detido, pôde falar, mas não conseguiu nada. No Ministério da Justiça ficou pela portaria. Tentou falar com Sílvio na escola e foi travado. Em São Francisco, o informático entrara numa depressão profunda. Por quatro vezes falhara o suicídio com Valium. “Dei por mim, dias a fio, a correr farmácias para ver os componentes dos medicamentos de venda livre. Na Net, estudava a quantidade para uma overdose mortal. Fui várias vezes à ponte e nunca consegui saltar. Depois vi uma notícia sobre uns fulanos que tinham engolido cocaína para a esconder, e que morreram. Arranjei 7 gramas, comprei comprimidos em cápsulas, abri as cápsulas, tirei o produto, enchi com a cocaína e tomei-as. Em vez de morrer, acordei quase sem respirar”.

 

Por pouco, Miguel convencia Júlio a regressar.

A 20 de julho, o engenheiro informático escrevia: “O meu desgaste mental é total e decidi entregar-me. Estou à espera de um autocarro para San José onde vou apanhar um voo para New York e de lá voo para Lisboa ou Madrid. Reservo-me o direito de mudar de ideias, já que o meu real desejo é morrer em vez de ir preso”. Júlio nunca comprou o bilhete. Morreu no dia 1 de agosto, no quarto 146 do hotel El Capitan, numa zona degradada de São Francisco. O gerente encontrou-o três dias depois, quando o odor já indiciava o pior. Tinha um saco na cabeça e muitos Valium no organismo, que o impediram de sentir a asfixia. No bilhete de suicídio escreveu: “A minha morte foi uma escolha minha, motivada pelas razões explanadas no meu livro. Prefiro morrer livre no vosso país a viver no meu, Portugal. O meu último desejo é ser enterrado nos EUA. Por favor, make it happen”. O funeral ainda não se realizou.

rmoleiro@expresso.impresa.pt

 

* Nomes fictícios (mantiveram-se as identidades criadas por Júlio no livro)

A TIA DO MENOR DIZ QUE “ELE NUNCA ESCREVEU QUE MENTIU SOBRE OS ABUSOS”

Deixou um livro autobiográfico, intitulado “Sem culpa”

 


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