ESPAÇO DE ENCONTRO E REFLEXÃO ENTRE CRISTÃOS HOMOSSEXUAIS em blog desde 03-06-2007
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publicado por Riacho, em 05.10.15 às 20:25link do post | favorito

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Um padre polonês, Krysztof Olaf Charamsa, membro da Congregação para a Doutrina da Fé, revelou sua homossexualidade neste sábado, 03-10-2015,  nos jornais, um dia antes do Sínodo sobre a família, para sacudir a uma Igreja ‘paranoica’ sobre este tema.

O padre nasceu em Gdymia, Polônia, e tem 43 anos. Ele reconhece que tem um parceiro. “Sei que terei que renunciar ao meu ministério, ainda que é toda minha vida”, afirma em entrevista concedida ao jornal Corriere della Sera.

Sei que a Igreja me verá como alguém que não soube cumprir com o seu dever (de castidade), que se extraviou e, como se não fosse pouco, não como uma mulher, mas com um homem”, exclama.
Mas “não faço isto para viver com meu parceiro. Faço-o por mim, por minha comunidade, para a Igreja. É uma decisão muito mais profunda que nasce da minha reflexão sobre o que prega a Igreja”.

Sobre o tema da homossexualidade, “a Igreja está atrasada em relação aos conhecimentos que alcançou a humanidade”, opina, e assegura que “não se pode esperar por outros 50 anos”.

“Está na hora da Igreja abrir os olhos frente aos homossexuais crentes e entenda que a solução que propõe, ou seja, a abstinência total e uma vida sem amor, não é humana”, declara.

“O clero é amplamente homossexual e também, infelizmente, homófobo até a paranoia, porque está paralisado pela falta de aceitação para sua própria orientação sexual”, acrescenta na edição polaca da revista Newsweek.

“Desperta, Igreja, deixa de perseguir os inocentes. Não quero destruir a Igreja, quero ajuda-la e, sobretudo, quero ajudar a quem ela persegue. Minha saída do armário deve ser um chamado ao sínodo para que a Igreja cesse suas ações paranoicas contra as minorias sexuais”, afirma.

“Gostaria de dizer ao sínodo que o amor homossexual é um amor familiar, que necessita da família. Todos, incluídos os gays, as lésbicas e os transexuais, levam no coração um desejo de amor e de família”, disse ao jornal italiano, numa mensagem dirigida aos 360 participantes do sínodo que se reunirá a partir do domingo, 04-10-2015, no Vaticano.

O padre polaco confessa que sempre se sentiu homossexual mas que, no princípio, não o aceitava e repetia o que a Igreja impunha, “o princípio segundo o qual ‘a homossexualidade não existe’”.
 Depois de conhecer o seu parceiro, teve “o sentimento de se converter num padre melhor, de fazer homilias melhores, de ajudar melhor os outros e de ser cada vez mais feliz”, narra para a revista Newsweek.

Ao tomar conhecimento das suas declarações, o porta-voz do Vaticano, segundo nota divulgada pela Sala de Imprensa do Vaticano, afirmou na manhã de hoje:

“Acerca das declarações e entrevistas concedidas por Mons. Krzystof Charamsa cabe assinalar que  - apesar do respeito que merecem os fatos e as circunstâncias pessoais e as reflexões sobre elas – a decisão de declarar algo tão clamoroso na véspera da abertura do Sínodo resulta muito grave e não responsável, já que aponta na direção de submeter a Assembleia sinodal a uma pressão midiática injustificada. Certamente Mons. Charamsa não poderá mais desempenhar as tarefas precedentes na Congregação para a Doutrina da Fé e nas universidades pontifícias, enquanto que outros aspectos da sua situação competem ao seu Ordinário diocesano”.

Charamsa trabalha na Congregação para a Doutrina da Fé desde 2003,  é secretário adjunto da Comissão Teológica Internacional do Vaticano e leciona teologia na Pontifícia Universidade Gregoriana e no Pontifício Ateneu Regina Apostolorum, em Roma.

Nunca até hoje, segundo o jornal Corriere della Sera, um religioso com uma função tão ativa no Vaticano tinha feito uma declaração do gênero.

Hoje Charamsa participa em Roma da primeira assembleia internacional dos católicos LGBT organizada por Global Network of Rainbow Catholics, na véspera do Sínodo sobre a família, na busca de aprofundar o diálogo com os gays católicos.

Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/547604-um-teologo-do-vaticano-revela-sou-gay

 


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publicado por Riacho, em 12.11.14 às 22:53link do post | favorito
 

É o primeiro grupo do Mezzogiorno [região sul da Itália] – excluindo as ilhas – que reúne, em uma paróquia católica, fiéis homossexuais e transexuais. Nascido a partir de uma ideia que já percorria há mais de um ano os corredores da igreja de San Silvestro di Bisceglie, o Grupo Nicodemo de Espiritualidade para Cristãos LGBT-Puglia se reuniu oficialmente pela primeira vez no dia 19 de outubro passado – foi curiosa a conjuntura com o encerramento doSínodo extraordinário sobre a família – e continuará a fazê-lo mensalmente, em um percurso que absolutamente não pretende pôr-se à margem, mas visa a uma plena integração na vida comunitária. Com o consentimento do pároco e dos paroquianos.

A reportagem é de Giampaolo Petrucci, publicada na revista Adista, n. 39, 08-11-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Fora das catacumbas e à luz do sol, portanto, com a leveza e a "normalidade" de um grupo paroquial qualquer que tem a vontade de se encontrar e se defrontar em torno da Palavra de Deus.

E que as coisas estão mudando também na Igreja Católica, talvez, fica demonstrado por essas experiências de vida cotidiana, mais do que pelos pronunciamentos de papa e bispos, ainda ambíguos e, no entanto, freados sobre a possibilidade de uma verdadeira revisitação da doutrina.

Ao menos, foi isso que surgiu a partir da conversa por telefone com Giovanna Failli, ex-transexual, agora mulher, comprometida há vários anos com a paróquia de San Silvestro, fundadora e animadora do Grupo Nicodemo daPuglia.

Eis a entrevista.

No dia 19 de outubro passado, encerrou-se, com a beatificação do papa da Humanae vitae, o Sínodo extraordinário sobre a família. Quais são as suas impressões? Você acha que as coisas estão realmente mudando?

No dia 19 de outubro passado, além do encerramento do Sínodo extraordinário sobre a família e da beatificação de Paulo VI, também nasceu o nosso grupo em Bisceglie. Não foi uma coincidência desejada ou buscada. Na realidade, não tínhamos pensado em tudo o que estava acontecendo ao mesmo tempo em Roma. No entanto, gosto de pensar que as coisas não acontecem por acaso, sem um motivo. Graças a esse Sínodo, descobrimos, dentre outras coisas, que a Igreja Católica não finge mais que não vê a realidade, mas começa a se defrontar com ela.

Pois bem, gostaria de dizer que não só as coisas estão mudando a sério, mas também se está abrindo um novo caminho de evangelização e de reconhecimento que parte da conscientização das fraquezas internas à própria Igreja. Nós, como grupo de fiéis, colocamo-nos em jogo para testemunhar uma Igreja viva que se reestrutura a partir de dentro e que não vive apenas de palavras, mas faz experiência de partilha fraterna e de aceitação de si e dos outros.

Como nasceu o Grupo Nicodemo em Bisceglie?

O grupo Nicodemo nasceu de uma ideia que eu quis compartilhar com a paróquia, depois de cerca de um ano durante o qual eu comecei a trabalhar seriamente para tentar dar início a um caminho de espiritualidade para as pessoas LGBT. Durante esse ano, consegui conhecer inúmeras realidades do Norte e do Centro da Itália, que me ajudaram a entender muitas coisas. Pude conhecer as suas experiências individuais e de grupo. Com muitos deles, consegui criar uma rede que está nos apoiando neste período de "start up".

No primeiro encontro, participaram diversos jovens que se moveram um pouco por todo o território regional. Com eles, logo percebemos a necessidade de que a Igreja esteja preparada para acolher a diversidade como elemento de riqueza para as próprias comunidades. Também experimentamos na nossa pele que, com obrigações e preceitos,  não se vai a lugar algum: só um desenvolvimento da consciência e um conhecimento real da vida das pessoas torna a pastoral um elemento vivo e vital.

No ano passado, o grupo dos pais da sua paróquia exibiram o filme Latter days, uma história de amor entre dois homens...

À época, não havia um grupo específico ativo na paróquia sobre o tema da relação entre fé e homossexualidade. Mas a experiência da projeção foi decisiva. De fato, o nosso caminho nasceu porque, depois da projeção do filme – dentre outras coisas, proposto pelo Grupo Famiglia, no âmbito dos encontros formativos organizados na nossa paróquia, e não pelos "homossexuais da paróquia" –, levantou-se muita poeira, até na imprensa nacional, como se aquilo que tínhamos feito na paróquia fosse um crime abominável. Naquele momento, senti a necessidade de testemunhar a experiência de acolhida e de partilha que eu vivo há alguns anos na paróquia e, sobretudo, de oferecer a possibilidade para que outras pessoas vivam a mesma experiência com serenidade e em harmonia com o restante da comunidade.

O grupo não pretende se colocar na sombra, mas quer participar ativamente da vida da comunidade, como qualquer outro grupo...

Sim, o grupo não quer ser uma Igreja na Igreja, mas quer ser plenamente Igreja. Portanto, no respeito dos tempos de cada um, ele tem como objetivo a participação ativa de todos os seus membros na vida comunitária, com base nos seus próprios carismas e nas suas próprias atitudes, na convicção de que trabalhar juntos derrota todas as barreiras.

O que torna a experiência de vocês "diferente" do que acontece em outras partes da Itália, onde grupos semelhantes ao de voês são rejeitados pelas comunidades e onde os párocos mais abertos são repreendidos ou punidos pelos seus bispos?

Eu não sei em que medida a nossa experiência é realmente diferente da dos outros grupos. Por enquanto, somos uma pequena realidade e estamos vivendo este período em harmonia com a paróquia. Tentamos fazer o nosso melhor, sem levantar muros, mesmo que, em nível diocesano, houve algumas pequenas críticas, mas, quando dois ou mais estão unidos no nome de Jesus, ele é o primeiro a nos dar uma mão.


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publicado por Riacho, em 20.03.14 às 23:24link do post | favorito

É preciso tempo, diálogo, encontro, reflexão, implementação de iniciativas para mudar o olhar de certos católicos sobre a vivência das pessoas homossexuais através de uma melhor compreensão da realidade.

A opinião é de Claude Besson, copresidente da associação Réflexion et partage e autor de Homosexuels catholiques. Sortir de l'impasse (Ed. De l'Atelier). O artigo foi publicado no jornal La Croix, 08-03-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Depois das ruidosas manifestações do ano passado e das últimas semanas, muitas pessoas homossexuais e suas famílias pensam, talvez, que não há muito a esperar por parte de uma certa faixa da Igreja Católica. Com efeito, pode-se acreditar que nada mudou, ou que até mesmo o modo de considerar as pessoas homossexuais deu passos para trás.

Há desânimo, o que é absolutamente legítimo e compreensível. No último encontro da nossa associação Réflexion et partage (Reflexão e partilha), uma mãe de família nos confidenciava: "Eu me acordo à noite e me pergunto por que tanto desprezo pelas pessoas homossexuais".

Apesar de tudo isso, não posso deixar de pensar naqueles que desejam continuar vivendo a sua fé na Igreja, mas que não encontram o lugar da palavra para eles, que estão isolados, que são desconhecidos, às vezes culpabilizados, que não vivem nas grandes cidades e que se escondem. Pessoalmente, não posso me desinteressar por ele, e é principalmente por essas pessoas que eu quero continuar agindo e acreditando que situações possíveis podem nascer.

Vai ser preciso tempo, diálogo, encontro, reflexão, implementação de iniciativas que poderão, pouco a pouco, mudar o olhar de certos católicos sobre a vivência das pessoas homossexuais através de uma melhor compreensão da realidade. Alguns poderão se surpreender, não faltam documentos, livros, artigos sobre esse tema. Mas, como eu pude constatar dando palestras em algumas dioceses francesas, tal ignorância traz medo. E o medo gera a exclusão, o desprezo, a confusão, os conflitos às vezes, os guetos e, no fim, o desejo de se livrar do outro. O medo é um mau conselheiro.

Ao invés, diversas dioceses organizam iniciativas para acolher melhor as pessoas homossexuais e as suas famílias. Por exemplo, na diocese de Grenoble, constituiu-se um "grupo da palavra" entre pessoas homossexuais, pais e responsáveis eclesiais. Em uma dezena de dioceses, ao menos, foram constituídas equipes, cujos primeiros encontros foram ricos em intercâmbios, partilha e diálogo.

Alguns elaboraram novas propostas, como o Chemin d'Emmaüs (uma iniciativa da diocese de Nanterre), um dia de peregrinação aberto a todos e particularmente às pessoas direta ou indiretamente envolvidas na homossexualidade. Tendo participado dele, posso assegurar que isso derrubou muitos preconceitos contra a homossexualidade. Também fui testemunha de um "grupo da palavra" constituído recentemente em uma paróquia da diocese de Lyonpor iniciativa dos pais.

Também foi apreciável a organização de seis seminários no Collège des Bernardins, em Paris, sobre "Fé cristã e homossexualidade" com representantes de associações (David et JonathanDevenir Un an ChristCommunion BéthanieRéflexion et Partage). O último seminário, sobre o tema "Fazer casal", permitiu apresentar as experiências de casais homossexuais e heterossexuais na escuta, no diálogo, na construção do viver-juntos e da fraternidade que trarão os seus frutos.

Eu acredito na possibilidade de avançar a pequenos passos, no trabalho de porosidade, como o fato de se inserir em uma equipe de animação pastoral, em uma equipe de partilha bíblica, em uma reflexão sobre o casal etc. Isso não é possível em toda a parte, certamente, mas eu conheço muitas pessoas homossexuais que, inserindo-se nas comunidades cristãs, fizeram avançar o modo de pensar de muitos católicos sobre a homossexualidade. Como um casal de homens com mais de dez anos de vida em comum que busca se inserir em uma reflexão paroquial para os casais (heterossexuais, é claro) que tem dez anos de vida em comum. Essas experiências de porosidade parecem particularmente frutíferas.

Poder-se-ia acrescentar a todas essas experiências in loco os recentes documentos do Conselho Família e Sociedade da Conferência Episcopal Francesa, que permitem entrever aberturas: "Não é pelo fato de que a Igreja concede um estatuto especial para a relação amorosa entre um homem e uma mulher que ela não concede valor a outras relações amorosas... Podemos estimar o desejo de um compromisso com a fidelidade de um afeto, de um apego sincero, da preocupação pelo outro e de uma solidariedade que vai além da redução da relação homossexual a um simples compromisso erótico" [1]. Em outro documento do mesmo conselho, lê-se: "Toda pessoa tem direito a uma acolhida amorosa, assim como ela é, sem ter que esconder um aspecto ou outro da sua personalidade" [2].

O verdadeiro diálogo, no sentido de deixar se atravessar pela palavra do outro (dia = atravessar; logos = palavra) é uma riqueza que é preciso começar e continuar sempre que possível. Penso que muitos cristãos e responsáveis eclesiais são pessoas de boa vontade e buscam refletir e compreender melhor.

"Para restaurar a comunhão, já se poderia começar com encontros entre pessoas homossexuais e simpatizantes da'manif pour tous'", declarava recentemente Dom Descubes, arcebispo de Rouen (no La Croix do dia 3 de fevereiro). As pessoas homossexuais nas associações cristãs estão disponíveis e desejam esses encontros...

"Uma árvore que cai faz mais barulho do que uma floresta que cresce", diz o ditado. Não podemos prever o porvir, mas cabe a nós fazê-lo "advir", lá onde estamos, cada uma e cada um de nós.

Notas:

1. Élargir le mariage aux personnes de même sexe ? Ouvrons le débat !, setembro de 2012.

2. Poursuivons le dialogue !, maio de 2013. 

 

PARA LER MAIS:


Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/529402-reconstruir-o-dialogo-com-as-pessoas-homossexuais-artigo-de-claude-besson

 


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publicado por Riacho, em 08.02.14 às 23:22link do post | favorito

Crónica semanal do Pe Anselmo Borges no Diário de Notícias!

 

Não. Francisco não é o Papa dos "pobrezinhos", ao contrário do que, com menosprezo, escrevem certos comentadores. Ele é o Papa de todos, na justiça, na solidariedade, nas reformas da Igreja, e é esperável que tenha êxito.

Tem gigantescos desafios pela frente e, entre eles, está certamente a questão da sexualidade e da família no mundo actual. Nesse sentido, lançou um inquérito dirigido a todos os católicos do mundo e não apenas aos bispos e aos padres, precisamente sobre este tema, de tal modo que os fiéis todos puderam exprimir-se livremente a Roma, o que nunca tinha acontecido ao longo dos dois mil anos da Igreja. O Papa quer ter conhecimento directo da experiência e do pensar das pessoas sobre estas temáticas. Antes, a Cúria era informada pelos bispos, contendo os seus relatórios "mais desejos piedosos do que factos", como refere a Der Spiegel da passada semana (27 de Janeiro). Não se conhece ainda o número de respostas nem os seus resultados - em Portugal, o interesse parece ter sido diminuto e não se viu empenho forte por parte da Igreja oficial -, mas eles constituirão uma base de reflexão para o Sínodo extraordinário dos Bispos, em Outubro próximo.

O número referido da Der Spiegel, com capa com o título acima - Der Papst und der verdammte Sex -, adianta já respostas de algumas das 27 dioceses alemãs, mostrando "o abismo entre a Igreja e os fiéis". Mesmo na Baviera conservadora, 86% dos fiéis não consideram pecado a utilização da pílula ou do preservativo; 63% dos casados que voltaram a casar continuam a comungar e 90% não foi por causa disso que o não fizeram; 70% declararam que nas fases difíceis da separação não receberam apoio por parte da Igreja.

Muitos condenaram a doutrina católica por "estranha à realidade" e alguns, atendendo à linguagem das perguntas, sentiram-se enquanto "europeus da Europa Central a recuar pelo menos cem anos". Segundo a BDKJ (União dos católicos alemães - juventude), "a moral sexual católica não tem qualquer importância para nove em cada dez jovens católicos"; "sexo antes do casamento e anticonceptivos fazem evidentemente parte da sua vida em relação". Ainda segundo a BDKJ, 96% das pessoas que mantêm "vida sexual" sem casamento católico não têm nenhum problema com isso e, apesar disso, os jovens católicos participam nos sacramentos. O Vaticano está enganado quando pensa que os casais só depois do casamento vivem e dormem juntos. Uma vida em comum à experiência "é hoje uma realidade de que já se não pode abstrair", comunica a diocese de Augsburgo. E assim por diante, na sequência alfabética das dioceses, até Würzburg, onde "uns 90% dos casais praticam uma vida em comum ad experimentum" - Friburgo: "a vida comum antes do casamento pela Igreja não é nenhum caso extraordinário, mas normal".

Alguns sentiram-se inclusivamente "chocados", quando o interrogatório usa, para os divorciados, a expressão "situações irregulares", sendo excluídos da comunhão e não se tendo a Igreja preocupado com os seus "problemas" ou "necessidades de fé". Outro grupo que recebe grande apoio da base é o dos homossexuais. Comunidades houve que acharam muito importante que se acrescentasse um ponto às perguntas do Vaticano, exigindo que se ponha fim à lei do celibato obrigatório.

Os resultados das respostas, que dão um mau testemunho da instituição eclesiástica e mostram a discrepância entre a doutrina e a realidade mereceram este comentário do bispo de Mainz, o famoso cardeal Karl Lehmann, uma voz constante a favor de um catolicismo aberto: "Estes resultados, mesmo que não sejam representativos, testemunham e fortalecem a impressão de uma situação infeliz, fatal." "Há muito que já sabíamos", disse sobre o profundo abismo entre o povo fiel e a hierarquia, "muita coisa foi reprimida".

Os fiéis exigem agora a publicação integral dos resultados. Seja como for, mesmo com todas as suas deficiências, o inquérito desencadeou uma dinâmica que será difícil parar. A pergunta é: como vai Roma lidar com a questão?

Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

 

Fonte: http://www.dn.pt/inicio/opiniao/interior.aspx?content_id=3675659&page=-1


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publicado por Riacho, em 02.02.14 às 10:19link do post | favorito

Com Brokeback Mountain, adaptação do conto de Annie Proulx que já dera origem ao filme de Ang Lee sobre a história de amor entre dois cowboys do Wyoming, o ex-director do Teatro Real de Madrid, Gerard Mortier, concretiza a sua ideia de que se a ópera é entretenimento para público liberal, serve para discutir os grandes temas da sociedade. A aposta era arriscada, a expectativa elevada - e a discussão vai continuar.

 Um imenso palco branco e vazio. Um corpo enorme, de negro, como um corvo a marcar o seu território. As primeiras notas, agudas, a sublinharem a desolação das montanhas rochosas do Wyoming fixadas num filme projectado em toda a extensão do palco. E, no entanto, na plateia o ambiente não era nem frio nem temeroso. Antes de se confirmar a tragédia que já todos conheciam, porque tinham lido o livro e visto o filme, a estreia de Brokeback Mountainera, foi, um acontecimento como Madrid nunca vivera.

Na noite de terça-feira era mais do que a capital espanhola. E o Teatro Real mais do que um teatro de ópera. A estreia mundial de Brokeback Mountain, que adapta o conto de Annie Proulx, era a mais aguardada da temporada e um dos projectos que há mais tempo o ex-director do Teatro Real, Gerard Mortier, acalentava. Na plateia a fina-flor das direcções artísticas dos teatros de ópera do mundo, de Los Angeles a Amesterdão, de Londres a Nova Iorque esperava para saber como era possível responder à expectativa que há meses vinha sendo criada pela adaptação à ópera do conto que serviu de base, em 2005, ao filme de Ang Lee sobre dois guardadores de rebanhos que se apaixonam nas áridas montanhas do homofóbico Wyoming americano.

Entretenimento e grandes temas
Ivo van Hove, o encenador, juntou os silêncios inquisitivos de Lágrimas e Suspiros (Bergman) aos desencontros afectivos de Noite de Estreia eHusbands (Cassavetes), prolongou o olhar sobre o homem em perda – de poder (Ludwig, de Visconti), de identidade (Teorema, de Pasolini), de afirmação da masculinidade (Rocco e os seus irmãos, novamente Visconti) – e, tal como fizera com Anjos na América (Tony Kushner), esventrou a América profunda pelo seu lado mais racional, desapossando-a do sonho americano, onde o individual sucumbe ao colectivo.

Brokeback Mountain, a ópera, pode ter sido recebida com aplausos moderados mas, ao longo de duas horas, os corpos, e as vozes, de Ennis del Mar e Jack Twist, eram, mas mãos de Ivo Hove, nas palavras de Annie Proulx e na partitura de Charles Wourinen, uma reflexão sobre a negação da condição humana. O desenho diagonal dos movimentos dos cantores entrava em diálogo com a aspereza ferida das palavras e, por vezes, parecia proteger-se da partitura, ela própria avançando e recuando como que provando que repressão e cumplicidade são ideias e sentimentos gémeos ou complementares.

O compositor diria, no encontro com a imprensa, que pretendeu “reflectir sobre algo que é universal de um modo que pudesse falar a um público contemporâneo” – intenção ao encontro da de Mortier, que, em 2009, o convidou após ter lido no New York Times um artigo onde Wuorinen mostrava o desejo de adaptar Proulx. Na altura, Mortier era ainda director do New York City Opera e, especulava o Financial Times esta semana, era impossível não imaginar que “quisesse, pelo menos de alguma forma, chocar o público com uma obra dodecafónica”. Este é, lembra o jornal, o homem que “liderou o gosto europeu ao longo da década em que esteve à frente do Festival de Salzburgo, provocando o público até à raiva e ao confronto, que definiu o perfil da agreste Trienal de Ruhr, que fez estalar o verniz em Paris e irritou Nova Iorque, construindo públicos por onde quer que passasse”.
 
Mas, tantos anos passados, a intenção de Mortier era outra. No encontro com a imprensa espanhola, contava o El País, Mortier tinha sido mais contundente do que com a imprensa internacional ao fim da tarde, encontro em que o PÚBLICO esteve presente: “Quando apresentámos esta ópera ao conselho de direcção, houve uma pessoa que me perguntou: ‘Mortier, de que público está à procura com esta produção? Disse-lhe: ‘Um público liberal que possa discutir grandes temas. Sabemos que muitos homossexuais são ainda descriminados”. Não escondera, de manhã, que “esta era uma escolha política, no melhor sentido da palavra” e, à tarde, explicou melhor em que constitui a sua ideia de ópera: “A ópera é entretenimento, mas isso não nos deve impedir de discutir os grandes temas da sociedade”. Na manhã seguinte o El Mundo trazia na primeira página “o êxito dos vaqueiros gays de Mortier” e, lá dentro, explicitava que “o impacto mundial [provocado pela ópera] não se explica sem a despedida de Gerard Mortier”, mesmo que fosse claro que não se podia dizer “ser uma montagem arriscada nem com cenas polémicas”. Na sala, as reacções às cenas íntimas entre Ennis del Mar (Daniel Okulitch) e Jack Twist (Tom Randle) foram recebidas com relativa indiferença por uma plateia que combinava os visons de quem podia pagar 363€ e as calças de ganga dos bilhetes de última hora a 36€.
 
O compositor Charles Wuorinen, segundo Mortier “um profundo americano de traços europeus”, explicara momentos antes da estreia que Brokeback Mountain não pretendia ser “uma obra ideológica mesmo que o seu contexto de produção contemporâneo nos leve a reconhecer um assunto que muito nos diz e que não é ainda universalmente aceite”.
 
Esperava-se mais
E, por isso, esta ópera sobre a sociedade americana – tanto quanto The Perfect American, de Philipp Glass, estreada há um ano e uma biografia amarga sobre Walt Disney – é uma ópera sobre a sociedade actual. O que explica a expectativa que rodeou a estreia, a abstracção da encenação, a educação dos aplausos e a ambiguidade da recepção crítica. Brokeback Mountain pode ser sobre a América profunda e homofóbica que Annie Proulx relatou na década de 80 em frases curtas, mas as decisões ambíguas e os lancinantes mal-entendidos entre Ennis e Jack, bem como os espelhos sociais que surgem contrastados nas famílias de um e de outro, são o microcosmos que disseca a realidade que existe à volta do palco do Teatro Real.

Oito anos depois da intenção de Mortier, e quando em economias emergentes como a Rússia e a Índia ou em vários regimes africanos a repressão dos homossexuais é ainda uma realidade por erradicar, ou nos tribunais americanos se fazem e desfazem leis sobre direitos e garantias, é difícil não projectar expectativas numa nova leitura daquela que se constituiu – por força do filme de Ang Lee e para surpresa de muitos - na maior referência junto de um público transversal. O compositor defendeu-se dessa expectativa afirmando estar a fazer “aquilo que foi sempre feito no palco e na escrita”, ou seja, dar forma artística e espaço público a histórias universais.

Brokeback Mountain, a ópera, pode ter sido recebida com aplausos moderados mas, ao longo de duas horas, os corpos, e as vozes, de Ennis del Mar e Jack Twist, eram, mas mãos de Ivo Hove, nas palavras de Annie Proulx e na partitura de Charles Wourinen, uma reflexão sobre a negação da condição humana.

Esperava-se sobretudo mais quando, na história da ópera, a homossexualidade é um tema pouco comum. Escreveu o Welt: “A ópera já deu forma a deuses e monstros, patifes e santos, cortesãs e castrados. É também uma arte de e para homossexuais. Mas homens que se amam tínhamos, até agora, visto e ouvido muito pouco. A ambivalência sexual é escondida em papéis de calças e mascarada em intrigas mais formais”. Antes de Alban Berg ter adaptado os dois livros de Frank Wedekind Espírito da Terra A Caixa de Pandora e criado Lulu, em 1935, nunca uma personagem tinha sido definida pela sua sexualidade como a Condessa Martha Geschwitz, apesar, por exemplo, de já em Rossini, com Semiramide (1823), e, mais tarde, em Strauss, com Der Rosenkavalier (1911), ser explorado o amor entre duas mulheres. Na história da música o nome de Benjamin Britten é referente máximo e Charles Wuorinen citou-o a propósito dos antecedentes da ópera com personagens gays. Peter Grimes (1945), Billy Budd (1951) mas, sobretudo, a sua adaptação de Morte em Veneza (1973) são um marco fundamental numa genealogia escassa, à qual se devem juntar a produção que a English National Opera apresentou em 2005 de As Lágrimas Amargas de Petra von Kant, a partir da peça, e depois filme, de Fassbinder, e a encomenda, em 2011, de Two Boys, de Nico Muhly, sobre os acontecimentos que levaram à morte de um adolescente. Em Madrid, contudo, Brokeback Mountain é uma estreia já que, lembrava o El PaísEl secreto Enamorado, de Manuel Balboa a partir de um texto de Ana Rossetti sobre Oscar Wilde, e apresentado em 1992, fora ignorada.

Brokeback Mountain pode não ser visto por Mortier, Proulx e Wuorinen como uma obra que hasteia uma bandeira. Isso não significa que da sua criação não se esperasse a constituição da “referência operática para a comunidade gay”, como escreveu a revista gay Out. “Aplaudimos o conceito mas não o resultado, apreciamos o marco que é a transformação em ópera de uma icónica história de amor entre dois homens, mesmo que não se tenha traduzido numa experiência artística satisfatória”. Esperava-se mais, nove anos passados sobre o filme. “Esta versão operática podia finalmente abrir as comportas emocionais mas apresenta-se surpreendentemente contida.” É o jornal alemão Welt quem sublinha o que se comentava após a estreia: “Num contexto como este, o que poderia ter uma importância capital, permanece um exercício de dever”.
 
A musicalidade da palavra
Foi Mortier quem, fazendo a defesa das suas escolhas, chamou a atenção para o risco de comparação entre filme e ópera. “São objectos muito diferentes” e não foi por acaso que a programou num diálogo com Tristão e Isolda, de Wagner (que Peter Sellars encena com cenários em vídeo de Bill Viola). “A diferença é que em Wagner tudo é muito explícito e Annie Proulx escreve frases curtas”, explicou, procurando justificar o modo como a estreia da contista americana abria novas perspectivas para a sua história. “Tornei-me mais consciente da musicalidade da minha própria escrita”, disse a autora ao PÚBLICO, falando de um trabalho de “abertura da dimensão poética da própria palavra”. “No Wyoming todas as frases são curtas, há muitas palavras que são difíceis e o trabalho consistiu em perceber como podiam ser cantadas, mesmo sendo curtas, difíceis ou indizíveis”.
 
O que a autora percebeu, nesta nova leitura do conto, foi a musicalidade da sua palavra. “Nos contos tudo pode acontecer, é um modo muito condensado de contar uma história que deixa mais por intuir do que aquilo que afirma”. A distância da autora relativamente ao filme começa aí. “Há coisas que não precisamos de saber porque há coisas que não sabemos o que são”. No seu libreto as palavras deixam os cantores em suspensão e Ivo van Hove, usando isso a seu favor, constrói todo o seu olhar no conflito visual entre a exacerbação dos sentimentos e a desolação do cenário, entre a consciência emocional do corpo e a consciência racional das palavras. Para o compositor esta abordagem à eminente tragédia é a força que estruturou o seu trabalho, respondendo à inarticulação inicial de Ennis del Mar (“à sua manifesta homofobia e conservadorismo”, descreve Proulx) e à consciência clara de Jack Twist sobre o que procura.
 
Para quem tiver lido o conto e visto o filme, a surpresa da adaptação surge não apenas na criação de mais espaço dramatúrgico para o percurso de Alma, mulher de Ennis, mas também pelo modo como Proulx se aproveita das “tradições da ópera” e introduz um fantasma na narrativa (o sogro de Jack Twist que levanta suspeitas sobre as verdadeiras razões da morte, acidente ou homofobia: “não precisamos saber”) e um coro que age como corpo moralizante e vigilante.
 
Mas, escreveria o Financial Times, “um autor superlativo não é automaticamente um libretista consumado” e “as palavras que eram apenas intuídas no conto original [eram] demasiadas palavras; menos teria sido melhor”. Opinião que contrasta com a dos espanhóis. No El País, mesmo se “o libreto é transparente e às vezes demasiado previsível” é precisamente porque “o tratamento teatral e lírico é mais racional, mais controlado, mais narrativo ao pé da letra”. E isso deve-se ao facto de a história apresentar “personagens normais, das que se podem encontrar nas ruas”, tal como, sublinha o crítico, Puccini fizera com La Traviata. “E sabemos o que disse a História sobre a recepção da La Traviata”, brincou Mortier fazendo alusão às reacções negativas do público do La Fenice em 1853. “Já estive nervoso demasiadas vezes para me importar com o que se possa passar”, disse o ex-director, ironizando com a sua doença (foi-lhe diagnosticado um cancro que o levou a abandonar o cargo): “Tornei-me um existencialista e preocupo-me menos”. Por isso, menos preocupado com o impacto local que a ópera pudesse ter e mais interessado no papel que um teatro de ópera deve ter, sobretudo numa “cidade aberta e liberal mas com elites dominantes conservadoras”.
 
As reservas mais explicitadas pela imprensa vão para a partitura abrupta de Charles Wuorinen que toma conta do palco num diálogo contrastante com as projecções “das verdadeiras paisagens do Wyoming, onde se pode morrer” (assim descreveu Mortier) que o encenador Ivo van Hove usa em fundo – num palco onde os adereços foram inspirados na cenas do quotidiano pintado por Edward Hopper. Este contraste entre diferentes harmonias – a do texto na sua intencionada releitura dos silêncios surdos criado pelas diferentes posições dos amantes; a da música na sua partitura “atonal, complexa, desprovida de emoções” (El Mundo); a da encenação, apostando num “sentido teatral preciso e rítmico” (El País) – explicará a dificuldade em avaliar se a resposta crítica é equivalente à expectativa mediática.
 
Wuorinen havia explicado que o seu método de trabalho se podia definir como “uma prosódia natural” ou seja, um exercício que se deixa conduzir pelas palavras. “Ainda que o faça admiravelmente”, escreveu o New York Times, “esta é uma ópera que dificilmente se ama”. No jornal, Anthony Tommasini escreveu que as qualidades do trabalho de Wuorinen, como “a engenhosa complexidade, as lúcidas texturas e a atonalidade ácida da sua escrita harmónica”, são aqui os pontos fracos porque “anulam o drama”. Escreveu oGuardian que a partitura “seca e estiolada” de Wuorinen lembrava “por vezes um Schoenberg tardio e, noutras, um Stravinsky de série que raramente transcende o texto de modo a explorar o drama, optando por pontuações lacónicas que o sublinham”. Para o jornal inglês isso é perceptível desde “a tenebrosa abertura” que, mesmo antecipando a tragédia, “quando é chegado o momento trágico, com a morte de Jack, duas horas depois, nada mais há para mostrar a violência que se esperava; o monólogo final de Ennis é apenas indicativo do potencial que a música poderia ter explorado”.
 
Ennis del Mar caminha de uma inarticulação das palavras, por não saber expressar ou compreender os seus sentimentos, até uma explosão emocional que é tardia, pois apenas surge após a morte de Jack. A tensão sugerida ao longo da ópera é alimentada pelo conhecimento prévio do espectador sobre o desfecho e a admissão de erro por Ennis, que ali promete nunca mais amar ou deixar-se amar. Gerard Mortier falava de Brokeback Mountain como exemplo de reflexão da “nossa relação com a vida através da arte”. Talvez seja possível admitir que, quando a camisa ensanguentada de Jack é içada e desaparece nas brumas que envolvem o palco, Ennis se dê conta de que passaram vinte anos desde a luta entre os dois, na manhã após a noite que passaram juntos. No momento em que se despede de Jack, o palco abandona o branco clínico pelo negro soturno e é possível ler nas intenções de Ivo Van Hove, Annie Proulx e Charles Wuorinen um questionamento sobre as nossas próprias escolhas. Mortier defendeu Brokeback Mountain como uma inscrição nas verdadeiras emoções operáticas: “Podia ser uma ópera de Puccini, mas é muito perigoso admiti-lo. Não é de sentimento [que se fala], é tragédia”.

 

Fonte: http://www.publico.pt/cultura/noticia/madrid-fica-no-rochoso-faroeste-norteamericano-1621975#/0

 


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publicado por Riacho, em 27.01.14 às 23:36link do post | favorito

Joana Villaverde é artista plástica. Tem 43 anos, duas filhas. Carolina Villaverde Rosado, a filha mais velha, estuda Ciências Políticas em Roma. Tem 20 anos. Constança acabou de fazer 18 anos, estuda na António Arroio, vive em Lisboa. Joana casou com Patrícia há dois anos, estão juntas há 14. No casamento, em Aviz, estava o pai de Carolina e Constança, a família deste, as famílias das noivas, as pessoas da terra... Carolina não tem memórias do pai e da mãe juntos. Desde que se lembra de si, tem uma madrasta e não um padrasto. Ela não gosta de dizer madrasta. É a Pat. Como foi crescer com uma família homossexual? Fez diferença? Mãe e filha contaram, em separado, como é esta família igual às outras, e feliz à sua maneira.

 

Carolina Villaverde Rosado

Um auto-retrato? Posso dizer que sou uma menina alegre. Não, não sou alegre: sou feliz. Curiosa. Gosto de pessoas. Resumindo muito: eu é pessoas. Sou eu em relação com os outros.

Não me preocupo com o que os outros dizem. Talvez um bocadinho... Ninguém é completamente livre. Antes fôssemos. Mas a relação com os outros é central. Uma vez disseram-me: “Com o teu sorriso, é possível alegrar tudo.” A base da minha felicidade está na educação que os meus pais me deram. Ou seja, faz o que te faz feliz.
Separaram-se quando eu tinha dois anos. São muito novos e tiveram-me muito novos. Isso é importante porque consigo estar com eles e os amigos deles sem pensar: “Lá vêm os adultos.”

O meu pai veio viver para Portugal aos seis anos. A minha avó é inglesa, o meu avô é português. Começou a trabalhar aos 17, é designer gráfico. Nenhum dos meus pais acabou a escola. São os dois uns meninos.

A minha irmã é dois anos e quatro meses mais nova do que eu. Os meus pais separaram-se quando ela tinha três meses. Ficámos a viver com a minha mãe e ao fim-de-semana estávamos com o meu pai. Mas aquilo mudava. Era consoante as folgas que ele tinha. Nunca houve nada fixo. Nunca houve aqueles problemas de tribunais. São superamigos. Não me lembro dos meus pais juntos. Tenho memórias da separação, de discussões ao telefone.

A minha mãe teve uns namorados entre o meu pai e a Pat. O meu pai foi tendo mais namoradas. Quase não me lembro da minha vida sem a Pat. Desde os quatro anos que tenho esta madrasta. Nunca digo isto! Não gosto nada de dizer “madrasta”. É a minha mãe e a Pat.

As minhas amigas, as principais, sabiam. A Pat era uma amiga da minha mãe que vivia lá em casa. Eu fazia questão, quando as minhas amigas dormiam lá em casa, de dizer que era uma amiga da minha mãe que dormia na mesma cama da minha mãe. Era evidente que não havia outro quarto, e preferia dizer.

Quase não me lembro da minha vida sem a Pat. Desde os quatro anos que tenho esta madrasta. Nunca digo isto! Não gosto nada de dizer “madrasta”. É a minha mãe e a Pat.

Nós vivíamos na Estrela com a minha mãe. De vez em quando, aparecia a Patrícia. Ficou Pat mais tarde. Perguntei porque é que ela não vinha mais. “Porque vive em Madrid.” Estava a fazer o doutoramento, é bióloga. Era bom quando estava. Era uma pessoa simpática, que gostava da minha mãe.

Depois fomos viver para casa dela, na Alameda. Eu tinha seis anos. Estava na primeira classe e lembro-me do momento em que disse que ia mudar de casa. Ao princípio era a casa da Pat, da família dela. A Pat tinha vivido nessa casa quando era pequenina. A minha irmã e eu dormíamos no quarto que tinha sido dela.

Uma vez perguntei directamente à minha mãe se ela e a Pat eram namoradas. Tinha nove anos. Era para ter as coisas mais claras. A minha mãe disse que sim. Normal. Contei a uma amiga. “Olha, afinal não é só uma amiga que dorme na mesma cama. São namoradas.” Eu sabia que eram namoradas, mas passou a ser verbalizado. Antes disso, nunca tinha sido dita a palavra “namorada”. Passou a ser oficial.

Quando era pequena, dizia. Era uma coisa nova para mim e para os outros. Não queria que os meus amigos sentissem que era uma coisa esquisita. Foi uma forma de me proteger, para não ter os bullyings. Nunca tive, não sei o que isso é. Dizia para que percebessem que era uma coisa normal. Depois deixei de dizer. Era tão normal que nem se dizia. Tenho uma amiga antiga que só percebeu quando lhe disse que iam casar. Ficou espantada. “Mas eu nunca te tinha dito que a minha mãe é homossexual?”

Nunca percebi bem como é que o meu pai lidou com a relação da minha mãe e da Pat. Acho que lidou bem. O meu pai estava no casamento delas, foi um dos primeiros a chorar... O meu pai tem conflitos amorosos, conta à minha mãe. A minha mãe tem problemas amorosos ou outros quaisquer, conta ao meu pai.

Chorou toda a gente no casamento. Era uma coisa tão bonita... Era o triunfo do amor.

Tivemos uma educação estrangeirada. A normalidade tem a ver com o meio em que circulamos. Foi possível que fosse uma coisa normal. A minha mãe protegia-nos muito. Mas sempre se falou de tudo lá em casa. Sexo, amigos, problemas amorosos, escolares, dinheiro. O que nos perturba tem de ser dito. Se não se partilha, fica ali uma bola.

Acho que isto tem a ver com a minha família, que nunca fez daquilo um bicho de sete cabeças. Nunca se escondeu. ambém nunca se expôs. Não andavam aos beijos. Acho que nunca vi um grande beijo entre a minha mãe e a Pat... Também não se vêem muitos casais hetero aos beijos, como se um entrasse dentro do outro.

Na escola fiz um trabalho de grupo. Um tema à nossa escolha. Escolhemos homossexualidade. No Liceu Francês, há pessoas abertas e outras que não são tão abertas. Colegas. Os professores são abertos. São franceses fixes. O meu grupo estava a fazer um trabalho sobre a homoparentalidade. Sobretudo os rapazes eram contra. Um colega disse: “Isso é uma coisa horrível. Depois as crianças também vão ficar homossexuais.” Simplesmente respondi: “A minha mãe é homossexual. Sou homossexual, eu?” Ficaram a olhar para mim. Brancos. Nunca mais me esqueço da cara deles. “Não.”

Foi assim que lhes disse que a minha mãe é homossexual. Estava a enervar-me aquilo. Estavam a ser tão estúpidos, tão estúpidos...

Uma vez perguntei directamente à minha mãe se ela e a Pat eram namoradas. Tinha nove anos. Era para ter as coisas mais claras. A minha mãe disse que sim. Normal.

O trabalho ficou chato. Passaram a ter mais cuidado com aquilo que diziam. Não era preciso.
Tinha 16 anos quando isto aconteceu.

Nunca senti nenhuma vergonha, nenhum embaraço. Nunca. As minhas amigas foram ao casamento da minha mãe. Fiz questão de ir bonitinha. Fui despejar o lixo e uma senhora de Aviz, onde foi o casamento, disse-me: “Então muitos parabéns às noivas.” Como é que aquela senhora, que nunca tinha visto, sabia que era o casamento de duas noivas? E estava contente!

Quando eu tinha 15, 16 anos, elas separaram-se. Fiquei supertriste. Achei que não iam voltar. Uma amiga disse-me: “Claro que vão voltar. Vê-se mesmo que gostam uma da outra.” Passou um ano, um ano e meio. A minha mãe foi viver para Nova Iorque cinco meses, ganhou uma bolsa. Voltaram. Fiquei muito feliz. Porque, lá está, é a minha mãe e a Pat. Sei que gostam muito uma da outra.

Fez-me confusão. “E agora, será que a minha mãe se vai juntar com outra mulher?” A possibilidade de vir outra mulher... Não sei se era por ser outra mulher ou por ser outra pessoa. Acho que era um misto das duas coisas.
Já com o meu pai, sempre que acaba com uma namorada, quando vem outra há sempre um nervosismo. “Ai, ai, ai, e se eu não gostar desta?”

Também me lembro de pensar: “E se agora é um homem?” E se a minha mãe não gostava de mulheres (em geral), gostava era da Pat? Também era estranho pensar na minha mãe com um homem.

Quando se começou a falar de co-adopção, disse: “Não me importava de ser co-adoptada.” Não era não ter pai ou não ter mãe. Era ter mais. Não posso ser co-adoptada porque tenho um pai, mas não me importaria. Não é uma substituição, é uma mais-valia.

A minha mãe vive um pouco nas nuvens. A Pat não. Eu sou muito responsável. O meu pai também é, mas não tanto como eu. A minha mãe goza: “Ela sai a ti, Pat.” Saio à Pat nisso. E na noção de que há coisas que têm de ser feitas para não se viver só no sonho.

Estando a minha mãe e a Pat casadas, é mais fácil lidar com a coisa. “Namorada” soava um bocadinho esquisito... É mulher! É mais oficial ainda. Quanto mais oficial, mais fácil é falar das coisas. O casamento põe a coisa mais ao nível de outros relacionamentos.

Nunca senti nenhuma vergonha, nenhum embaraço. Nunca. As minhas amigas foram ao casamento da minha mãe. Fiz questão de ir bonitinha.

A experiência da minha irmã é diferente. Ela não é tão aberta. Quase não falámos sobre este assunto. Só um pouco, quando elas se separaram. Também não falávamos muito do meu pai e das namoradas dele. Talvez falássemos um bocadinho mais porque houve várias. Acho que nunca falámos sobre a minha mãe e a Pat porque não era preciso falar. Fazia parte.

Se calhar não faz sentido o que vou dizer, mas digo: não se questiona o pai e a mãe. São aqueles. E eu também não questionava a minha mãe e a Pat. Desde que me lembro de mim, elas existem.

A verdade é que a minha irmã e eu só começámos a falar desde que fui para Bruxelas, onde estive dois anos. Agora estou em Roma. Ela começou a crescer, começámos a ter mais proximidade. Começa a ser também uma amiga, para além de ser minha irmã.

Referências? Como tenho a referência masculina do meu pai... Mas não é por aí. Acabamos por ter referências masculinas e femininas de várias pessoas. O avô, um tio, um amigo mais próximo. Acho esse argumento um bocado estúpido. Acho que depende mais da relação com os pais. Tenho amigos que não falam com os pais. Eu falo. Com os meus pais, com a Pat. Agora também falo com a Pat sobre tudo.

Referências femininas: a minha mãe nunca se pintou, eu era a miúda mais pirosa que se possa imaginar. Ainda bem que a minha fase pirosa foi aos seis anos... Pintava-me, inventava fatiotas, ia de saltos altos para a escola. A minha mãe dizia: “Há-de passar.” E passou. O maquilhar vem da minha avó materna. Ela punha um risco nos olhos e usava uns brincos brilhantes.

A minha família é uma família alargada. O núcleo é a minha mãe, a Pat, o meu pai e a minha irmã. Não sei se as namoradas do meu pai entram na família alargada...

Nunca tive ordens da Pat. Ordens do tipo: “Vai lavar a loiça”, sim. Decisões do tipo: “Posso ir a uma festa?”, não. Talvez entre elas houvesse um consenso, mas a informação passada era a da minha mãe. Nunca tive com a Pat uma disputa pelo poder. Posso ter dito, em criança: “Tu não és a minha mãe.” Como disse às namoradas do meu pai. O normal que os miúdos dizem. “Tu não mandas em mim.” Birras. Talvez o “vai lavar a loiça” da Pat não fosse igual ao da minha mãe. Mas tínhamos de lavar de qualquer maneira.

Não percebo essa coisa de os filhos dos homossexuais saírem homossexuais... Eu não sou. Quer dizer, ainda não me apaixonei por nenhuma mulher, nunca me senti atraída por nenhuma mulher. Mas quem sabe?

Joana Villaverde

É igual. Mãe, pai. Mãe, mãe. Pai, pai. O principal para as crianças é sempre o amor.
Tive as minhas filhas muito cedo. A única certeza que eu tinha era que tinha amor para lhes dar. Do resto, não sabia nada. Se ia ter casa, se ia ter dinheiro para pagar as contas. Eu sabia que tinha a capacidade de as amar. Sabia mesmo. As minhas filhas cresceram a saber que são amadas. Por isso, tanto fazia, de facto, a sexualidade que a mãe tinha.

Elas são amadas pela mãe, pela mulher da mãe, pelo pai, por mais gente. Ganharam mais família.

Para elas, durante alguns anos, era uma coisa ambígua. Tive alguns cuidados, porque eram muito pequeninas quando comecei a namorar com a Patrícia. Tive medo que fosse tão natural para elas que se pusessem a dizer na escola que a mãe tinha uma namorada e que pudessem sofrer com isso.

Uma das primeiras coisas que quis fazer — por elas — foi dizer ao pai delas que tinha uma namorada. Dizer à mãe do pai delas que tinha uma namorada. À minha mãe, à minha família. Quer dizer, que o núcleo familiar delas soubesse. Soubesse tudo. Que fosse tudo claríssimo.

Vamos do princípio. Tive a Carolina com 22, quase 23, a Constança com 25. Era uma maluquice. Tem a ver com as artes. Era um amor e uma cabana. Concretizámos esse sonho, o Zé Pedro e eu. Ele é designer. Ultrapresente enquanto pai. Foi muito importante nesta revolução na minha vida. Eu própria também não sabia que havia esta possibilidade de me apaixonar por uma mulher. 

Ah.Sabe o que era? Era a capacidade de amar. O que for. Homem, mulher..., aconteceu-me assim. Não é ser uma coisa e depois ser outra. É ser-se sempre a mesma pessoa com inúmeras capacidades. A capacidade de amar — os filhos, um homem, uma mulher — existe em mim. Não houve nenhuma alteração.

Sabe o que era? Era a capacidade de amar. O que for. Homem, mulher..., aconteceu-me assim. Não é ser uma coisa e depois ser outra. É ser-se sempre a mesma pessoa com inúmeras capacidades

Na sociedade que temos não é simples assumir a homossexualidade. Nunca quis dar entrevistas. Não tenho de expor a minha vida pessoal e a minha sexualidade ao mundo. Mas hoje, como as coisas estão, acho que é importante começar a dizer-se. Dizer que é natural. Dizer que ninguém tem nada a ver com a sexualidade do outro. Podia ser um homem. É uma mulher, que amo há muitos anos. Casámos. Somos muito felizes.

O Zé Pedro e eu começámos a namorar cedíssimo. Eu tinha 15, ele tinha 14. Começámos a viver juntos aos 18. Separámo-nos no ano em que nasceu a Constança. Foi muito mais inconsciente ter crianças na situação em que as tivemos do que juntar-me com a Patrícia e com as minhas filhas. Não havia estrutura. O Zé Pedro era o único que trabalhava, eu, como artista plástica, só tenho dinheiro sabe-se lá quando. Nunca é por mês e as contas são por mês. Não havia nada, senão o amor.

O estar tudo bem com as crianças sempre foi o principal. Os fins-de-semana: a Carolina agarrava-se a mim como uma lapa, não queria ir. Eu tirava-lhe dedo a dedo: “Tens de ir para o pai. Porque é assim.” Depois comecei a ficar muito cansada e pedi-lhe que ficasse uma semana por mês com elas. Guarda conjunta. Nunca tratámos de nada legalmente. Foi tudo a falarmos um com o outro. Acordo.

Quando me apaixonei, demorei algum tempo a perceber o que é que estava a acontecer. Até ao momento em que me perguntei: “Porque é que não estou mais com aquela pessoa se estou tão feliz com ela? Porque é que estou a retrair-me?” Eram os meus próprios preconceitos, os preconceitos sociais. Percebi que estaria muito melhor se estivesse sempre com aquela pessoa. A Patrícia. A Pat.

Nunca mais me vou esquecer da frase que me disse a minha sogra, a mãe do Zé Pedro, quando lhe disse que ia viver com a Patrícia. Ela é inglesa. “But you know the big step you’re doing?” [“Sabes que estás a dar um grande passo?”] Sempre do meu lado, sempre do meu lado. “Sei.”

Tinha ido falar com uma pedopsiquiatra. Estava com medos. Como é que eu ia fazer? Como é que geria isto? Ela respondeu-me: “O que é que as pessoas têm a ver com isso?” Mas eu queria que as miúdas tivessem a base segura. Que não houvesse mentiras.

Não sei mentir. Incuti-lhes a ideia de que não se mente. Se se mente perde-se a confiança e perde-se o essencial numa relação, não é? Não podia mentir às minhas filhas. Mas cheguei a dizer que a Patrícia era uma amiga muito especial... Uma amiga muito especial quando a criança tem quatro anos pode ser o que a criança quiser. Era uma espécie de mentira... Tive de esperar que elas tivessem os seus alicerces.

Retomando a história: depois de me apaixonar, demorei tempo a aceitar. Um andar assim, depois uns beijos, tudo muito estranho. [riso] Quero, não quero. Sobretudo pela responsabilidade em relação às miúdas. Eu queria ter a certeza do que estava a fazer.

Não queria criar confusões. O mesmo com namorados homens, que tive, depois de me separar do Zé Pedro. Agora a mãe anda com um e depois com outro? Se não tinha a certeza do que era aquela relação, não queria que fossem dormir lá a casa. O normal. É o que se faz aos meninos.

Contei que me tinha apaixonado no momento em que fui viver para casa da Patrícia. Foi uns dois anos depois de estarmos juntas. Antes disso, a Patrícia vivia em Madrid, estava a fazer o doutoramento. É cientista.

Acho que não houve nenhuma conversa difícil. A conversa com a Melinda, a mãe do Zé Pedro, foi libertadora. Eu sabia responder ao que ela me perguntava, eu sabia que aquele era um grande passo. Estava segura.

Foi muito mais inconsciente ter crianças na situação em que as tivemos do que juntar-me com a Patrícia e com as minhas filhas

À minha mãe perguntei: “Não sei se já percebeste o que é esta relação que eu tenho...” Ela fez-se meio desentendida. Insisti: “Nunca verbalizaste com o Grilo (era o namorado dela)?” “Por acaso já verbalizei.” Ficou assim.

O meu pai já tinha morrido. Morreu no ano em que me separei, em que nasceu a Constança, 1996. Foi um ano duro.
A minha relação com a Patrícia fez muito bem à cabeça da minha mãe. Tem 71 anos e mudou. Há uns tempos, se calhar, não acharia nada bem a co-adopção. Diria: “Coitadas das crianças. Vão ser cobaias.” Percebeu que o amor é o mais importante. E sabe o que são as crianças em instituições. Percebeu, na prática, que não há problema nenhum.
Temos duas amigas que vivem juntas e que têm duas filhas; a minha mãe acha o máximo.

Não, não temia a reacção do Zé Pedro. Porque nós temos uma relação de amizade muito grande. Somos um bocadinho irmãos. Crescemos juntos. Vem contar-me dos seus desgostos amorosos, pedir-me opiniões. Tem imensa graça. Acha que a Patrícia é a sã da família. “Ah, se a Patrícia disse isso, é melhor fazer como ela diz.” Ela é cientista, deve perceber melhor do que nós, que não percebemos nada. Nunca houve atrito entre o Zé Pedro e a Patrícia. Jamais.

O todos os dias é normalíssimo. É assim: recebo um telefonema a perguntar: “Já trataste da viagem de não sei quem que tem de ir não sei para onde, e não há dinheiro?”

A Patrícia fala muito pouco. Teve uma história parecida com a minha. Não tem é filhos. Fui a primeira mulher na vida dela. Ganhou mais uma família, a do Zé Pedro. Vamos todos ao Natal dos ingleses, da família do Zé Pedro. É o meu Natal preferido.

A Carolina tinha seis anos, a Constança tinha quatro quando fui viver com a Patrícia. A Carolina é muito dada, começou logo a pentear a Patrícia. A Constança é mais reservada e, muito pequenina, tudo o que viesse ter com a mãe não era bem vindo.

A Carolina tinha necessidade de dizer às amigas. Iam lá a casa, percebiam que o quarto da mãe era da mãe e da Pat. Também para as amigas era uma coisa normal. Não faziam perguntas. Quando disse à Carolina, deu uma choradeira. “A Patrícia é minha namorada.” Mas não teve a ver com o facto de a Patrícia ser minha namorada. Foi por ter sido das últimas a saber. “Porque toda a gente já sabe e eu não...” Tive de lhe explicar que toda a gente sabia por causa dela. Para que fosse normal. Chegava a avó, chegava qualquer pessoa e não havia quartos fingidos. Ela tinha sete, oito anos.

Não podia mentir às minhas filhas. Mas cheguei a dizer que a Patrícia era uma amiga muito especial... Uma amiga muito especial quando a criança tem quatro anos pode ser o que a criança quiser. Era uma espécie de mentira... Tive de esperar que elas tivessem os seus alicerces

As minhas filhas fizeram o Liceu Francês. Há lá uns meninos, sobretudo os portugueses, muito conservadores. Um dia, um estava a dizer: “Os homossexuais, que horror. E os filhos dos homossexuais são homossexuais.” A Carolina meteu-se no meio. “Desculpa, mas não são. Porque a minha mãe é homossexual e eu não sou.” Os miúdos ficaram caladíssimos e com um respeito gigante por ela. A coragem que ela teve.

À Constança perguntei: “Os teus amigos sabem a relação que a tua mãe tem?” Muito poucos sabiam. A Constança, quanto menos se falasse do assunto, melhor. Hoje é uma activista! Em pequena, dizia: “Que é que eu tenho a ver com isso?”
Hoje têm uma relação óptima. As duas sentiram que a Patrícia trazia alguma paz. Paz à casa, a mim.

A verdade é que a Patrícia nunca quis interferir na educação delas. Na escola, ajudava nas coisas de que não percebo nada, Matemática, Física. Não quis meter-se. Está presente, às vezes zanga-se... O quotidiano. Há tempos zangou-se com a Constança porque ela ia vestida com os calções e uns collants, e estava frio e a chover. [riso] Coisas normalíssimas.
Nunca disseram muito: “Não és a minha mãe, não mandas em mim.” A Patrícia nunca quis mandar nelas.

O casamento, ao contrário do que sempre imaginei — que era uma prisão —, foi uma liberdade. Há coisas que fazemos mais vezes de mão dada. Mas a Patrícia e eu não somos o tipo de casal que está sempre aos abraços e aos beijos. Tudo o que é relacionado com o amor verdadeiro não é mostrado. Sendo que os outros, as miúdas sabem tudo. Mas não é de porta aberta. Acho que devia ser assim em casais homossexuais, heterossexuais. Há coisas que são privadas.

Com o Zé Pedro, era igual. Não dávamos a mão na rua. Tem a ver com a personalidade.

Não sei se alguma vez as minhas filhas se uniram para falar deste assunto. Gostava de achar que sim. São duas raparigas, estão sempre a zangar-se, mas são muito unidas. Adoram-se. E protegem-se imenso. Nunca ao pé de mim. Ao pé de mim estão sempre aos gritos, a competir pela atenção da mãe. Elas não vão gostar de ler isto...
Tivemos um interregno de mais de um ano, a Patrícia e eu. O medo delas era que aparecesse alguém extravagante... Foi em 2009.

O casamento, ao contrário do que sempre imaginei — que era uma prisão —, foi uma liberdade

Aos 40 estive sozinha, com uma bolsa, em Nova Iorque. Nunca tinha estado sozinha. Aprendi a concentrar-me. Em relação ao trabalho e à vida. Focagem. Eu não tinha isso. Nunca tinha podido concentrar-me em mim. Estava sempre a concentrar-me noutras pessoas.

Porque é que casámos? Para já, porque se podia. Queríamos imenso fazer uma festa. Enlouquecemos e comprámos uma ruína em Aviz quando queríamos comprar uma casa em Lisboa. Estava escrito no jornal. Uma casa baratíssima. Era um dia de início da Primavera. Recuperámos a casa.

Escolhemos o dia da Revolução Francesa para casar. Achámos que ficava muito bem. O bolo dizia: liberté, egalité, fraternité. E tinha duas Mariannes, em azul. O interior do bolo era vermelho, branco por cima. Tudo certinho.
Foram amigos e pessoas de Aviz. Queria tudo ir à festa, participar. O senhor Zé, que tinha ali uma horta, perguntou: “Se já são tão amigas, porque é que se vão casar?” “Porque se pode.” “Então está bem.” Ficou esclarecido. O não se compreender as coisas aprisiona. Assim ficou tudo claro.

Também aprendi assim, que ser amado é o mais importante. Sobretudo com a minha avó materna. Tinha a quarta classe e uma inteligência emocional enorme. Tenho pena de que ela não tenha conhecido a Patrícia. Ter-lhe-ia feito confusão, mas acho que diria: “Pois, filha, se é bom para ti...”

Fonte: http://publico.pt/portugal/noticia/todas-as-familias-felizes-sao-iguais-esta-e-igual-a-sua-maneira-1620861

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publicado por Riacho, em 14.01.14 às 22:00link do post | favorito

Wunibald Müller é teólogo, psicólogo e diretor da Recollectio-Hauses, uma instituição da abadia beneditina deMünsterschwarchach, que é sustentada financeiramente por diversas dioceses. Suas atividades se direcionam a padres, religiosos e colaboradores eclesiais em situação de crise pessoal e profissional. O psicoterapeuta católicoWunibald Müller não vê nenhuma contradição entre a homossexualidade e uma vocação presbiteral – desde que o padre viva de maneira celibatária. Müller fala na entrevista do coming-out do ex-jogador de futebol Hitzlsperger.

A entrevista foi publicada no sítio www.domradio.de, 09-01-2014. A tradução é de Benno Dischinger.

Eis a entrevista.

Uma pessoa admite abertamente um aspecto íntimo de si. Ter-se-ia esperado que o coming-out de ex-jogador de futebol provocasse tanta celeuma?

Verdadeiramente não. Eu pensava, depois que políticos e ministros haviam revelado sua homossexualidade, que isso não provocasse mais tão grande sensação.

Que significado tem então esta celeuma midiática: percebe-se homofobia na sociedade?

Evidentemente sim, pelo menos sutil. Porque, por exemplo, depois que um ministro do exterior ou um político em função fizeram coming-out, se pode pensar que se trate de algo a que a população reaja mais tranquilamente. Mas, evidentemente ainda há uma sutil homofobia.

Homofobia significa, por exemplo, que as pessoas tem um medo irracional de entrar em contato com os próprios impulsos homossexuais. Ou então, que vejam a família colocada em perigo. Ou então, em contexto teológico: a convicção que a homossexualidade não esteja em harmonia com a ordem da criação. Ainda há, portanto, estas sutis reservas. Se, por exemplo, se pensa no carnaval, quando são feitos comentários sobre o ministro do exterior homossexual, também isto está um tanto no limite. Aqui já se entende que muitos ainda pensam de maneira muito grosseira, estúpida e primitiva sobre a homossexualidade.

Também não poderia ser o fato de que se tratava precisamente de um jogador de futebol ter suscitado tal eco?

Naturalmente, porque precisamente um famoso futebolista é muito idealizado e é chato por em relação a homossexualidade com uma pessoa tão idealizada. Ainda mais se é um esportista: nele se concentra tudo o que se atribui à virilidade, coisa que com frequência não se consegue conciliar com a homossexualidade.

Depois da Jornada Mundial da Juventude no Brasil, no verão passado, o Papa Francisco havia dito: “Se uma pessoa é homossexual e procura o Senhor e tem boa vontade, quem sou eu para julgar?” O que significa isto para a teologia e para a doutrina da Igreja?

Significa que sempre, também perante os homossexuais, antes de tudo se deve ver a pessoa e que não se deve reduzir a pessoa homossexual à sua homossexualidade. Mesmo sabendo que naturalmente a homossexualidade representa uma parte importante de sua vida. Significa, por exemplo, que a Igreja se expressa muito fortemente a favor de relacionar-se com respeito e amizade com as pessoas homossexuais. E que a uma pessoa homossexual deve ser oferecido respeito e amizade exatamente como a uma pessoa heterossexual. Isto significa, fundamentalmente que poderia levar naturalmente a determinadas consequências, mas eu não sei naturalmente se a Igreja chegaria a tanto.

A discrição do Papa Francisco durante a conferência de imprensa no avião já havia provocado certo movimento midiático. Mas, então é possível para um padre que vive de maneira celibatária admitir a própria homossexualidade?

Efetivamente deveria ser possível que um padre que vive de maneira celibatária possa dizer que sua tendência sexual é homossexual. De fato a Igreja distingue ela própria entre orientação homossexual e comportamento homossexual e diz que a orientação homossexual em si é, sim, objetivamente desordenada, mas que é algo que no fundo não se deve esconder. Acho que seria bom que os padres pudessem admitir com naturalidade, mais abertamente de quanto no momento não ocorra, ter uma orientação homossexual e viver de maneira celibatária. Coisa que é possível para quem é heterossexual e padre.

Mas, a seu ver, por que os padres não o fazem?

Porque, naturalmente, agora como anteriormente, têm medo. O problema da homofobia, naturalmente, também na Igreja é muito forte. Têm medo que o povo possa tratá-los como pessoas de segunda categoria, têm medo de ser postos de lado. Medo que uma parte importante de si mesmos possa levar outras pessoas a ter um comportamento de reserva.

Você se ocupou longamente deste argumento. Enquanto ainda era estudante já se ocupara com a homossexualidade na Igreja. Como vive este debate nos últimos anos? Mudou alguma coisa?

Papa chega a falar numa conferência de imprensa... Claramente, usou a palavra “gay”, o que já significa que é, por si, aberto sobre o tema da homossexualidade. Creio que isto vá juntamente com o fato que na Igreja se possa discuti-lo mais abertamente. Também pode levar ao fato de que um número sempre maior de padres homossexuais tenham a coragem de admitir sua homossexualidade, não tenham mais aquele medo que existia antes e que os impediu de admitir uma parte importante de si mesmos.

Pensa, então, que este debate prosseguirá e que a agitação midiática não será superada no decurso de duas semanas?

A agitação midiática passará, mas o debate continuará. Esperamos que leve a considerar a homossexualidade como algo natural, a propósito do qual talvez não se deva mais agitar-se tanto. Quanto mais se conseguir fala dehomossexualidade de maneira normal, menos ela será considerada um enorme problema.


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publicado por Riacho, em 26.07.13 às 20:16link do post | favorito

James Alison (foto) é um teólogo especial. É inglês, mas está há muitos anos na América Latina, onde vive atualmente. É definido como “o sacerdote católico que procura, a partir da teologia, saídas para todo tipo de amor, incluindo o amor gay”. Alison apresenta argumentos científicos para sustentar que “a homossexualidade é uma variante minoritária, e não patológica, da condição humana”.

 
Fonte: http://goo.gl/2MY23k 

Ele explica o empenho da Igreja em definir ahomossexualidade como uma desordem, porque “no momento em que se reconhece que uma relação entre duas pessoas do mesmo sexo pode ser boa, é reconhecida a possibilidade de que existam atos sexuais em si, não abertos à procriação, e com isso toda a moral sexual tradicional desmorona”. Contudo, a porcentagem de católicos que concordam com esta doutrina sexual é muito baixa, “porque requer que os gays sejam considerados heterossexuais defeituosos”.

Alison afirma que “aqueles que mais perseguem os gays na Igreja, são gays reprimidos”, e conclui confessando, a partir de sua experiência pessoal, que aquilo que mais lhe doeu “não foi a violência das pessoas más, mas o silêncio dos bons”.

A entrevista é de José Manuel Vidal, publicada no sítioReligión Digital, 10-07-2013. A tradução é do Cepat.

Eis a entrevista.

Bem-vindo, James.

É um prazer estar aqui. Há tempo acompanho vocês, desde o México, Brasil, Chile ou de onde estive, e é um prazer estar aqui, “no miolo”. Muitos dos articulistas de Religión Digital são meus amigos ou conhecidos, como X. Pikaza, que fez um epílogo lindíssimo para o meu primeiro livro e, desde então, nós nos correspondemos.

Você é um teólogo com obra?

Sim. Tenho pelo menos sete livros publicados em inglês, e agora acaba de sair o oitavo, que é inteiramente um curso de introdução à fé cristã, acompanhado de um DVD, pensado para que pequenos grupos possam se aprofundar na fé cristã. Três de minhas obras foram traduzidas para o espanhol: “Conocer a Jesús”, que foi a obra para a qual Pikazafez a gentileza de escrever o epílogo, “El retorno de Abel”, editada por Herder e que é de escatologia; e a outra se chama “Una fe más allá del sentimento”, que é meu primeiro livro, em espanhol, que trata da questão gay.

Sempre digo, com bastante insistência, que eu não faço “teologia gay”. Faço teologia católica a partir de uma perspectiva gay. É muito importante fazer esta distinção, porque, caso contrário, transforma-se numa questão de gueto.

Você foi dominicano?

Sim, há muito anos. Agora sou um presbítero desocupado, em certo sentido. Quando organizaram a papelada para a dissolução dos meus votos, os dominicanos me fizeram o grande favor de não mexerem em nada no tocante ao meu sacerdócio. Então, de acordo com o Direito Canônico, descobri que posso ser sacerdote, em boas condições, sem estar incardinado, e também apto para ser incardinado, caso houvesse um bispo suficientemente louco para me querer em sua diocese. É curioso, porque um alto eclesiástico, certa vez, tentou resolver esta questão e não pude, porque quando alguém é sacerdote ordinário e não tem nenhum responsável é muito difícil fazer alguma coisa.

Apesar disso, você continua trabalhando como teólogo, missionário e catequista.

Sim, às vezes, mas sempre em lugares onde não cause escândalo. Quando estou em retiro, por exemplo, ou para a comunidade LGBT. Porque quando todo mundo é “irregular”, já não existe escândalo.

Como objetivo de sua vida, você assumiu buscar uma saída, dentro da Igreja e da teologia católica, para a realidade da homossexualidade?

Espero não causar surpresa, mas eu me identifico muito com uma coisa que Ratzinger fez e que me pareceu muito interessante: recuperar o sentido de que a fé cristã é boa nova. E isto significa escavar no espaço dos escombros do moralismo dos últimos dois ou três séculos, para tentar recuperar algo do frescor do Evangelho, e não do pensamento moralista de sacrifício, que até recentemente pareceu normal na fé cristã, tanto do lado protestante como do lado católico. E, é claro, sair deste “mundo de escombros moralistas” afeta tanto as pessoas gays como as pessoas heterossexuais. Faz parte do mesmo processo.

Ou seja, você está pedindo uma mudança na doutrina moral e sexual da Igreja.

Não, o que estou buscando é um novo paradigma para entender a fé, a salvação, a caridade e a natureza... retornando a um paradigma muito mais antigo, de uma completa ortodoxia. Por isso, não significa mudar a doutrina, porque me parece inconveniente. Se o que Jesus disse está correto, como se explica esta miséria de tramas moralistas que entramos? Porque é tão evidente que não foi assim no início! De fato, eu me considero radicalmente conservador, e não ao contrário.

A Igreja protestante alemã acaba de assinar um documento em que reconhece a existência de formas diferentes de família. Você acredita que isto é um exemplo de que certas mudanças começam a existir, nesse sentido?

Sim. De maneira explícita, a Igreja protestante reconheceu a homossexualidade, e na Igreja católica também já ocorreram mudanças. Não acredito que a questão gay seja algo sumamente difícil de ser aceita pelos fiéis católicos, mas pelo estamento clerical católico. Pelo que foi visto em pesquisas realizadas mundialmente, em países de maioria católica, a porcentagem de população católica que vê com bons olhos a normalidade de seus amigos ou parentes gays é até maior do que a média da sociedade.

Quer dizer que quem se escandaliza é o clero, não o povo?

Vocês viram isto, aqui, em seu país, que aprovou a lei do casamento igualitário. Se me recordo bem, 60% ou 70% da população estavam perfeitamente tranquilas com isto. Ao contrário, os bispos não. E aí está o problema. Diferente de outras questões de tipo moral, como o aborto, por exemplo, em relação à questão gay o povo não está alienado como os bispos. As duas questões não têm nada a ver uma com a outra. A diferença está no fato de que a convivência demonstra que isso de pensar que os gays são pessoas “objetivamente desordenadas”, nesta altura do campeonato, não tem pé e nem cabeça.

Nesta questão, a definição oficial reinante foi cunhada em 1986 (ou seja, muito recentemente), num documento do Vaticano que dizia: “Embora, em si, a inclinação homossexual não seja um pecado, supõe uma tendência mais ou menos forte para atos intrinsecamente maus, e por isso deve ser considerada objetivamente desordenada”. Está é a lógica eclesiástica que continua insistindo que não existem bons atos homossexuais, e que, portanto, define as pessoas gays como objetivamente desordenadas. Uma analogia seria a anorexia, que é uma patologia do desejo. Entretanto, caso alguém considerasse a anorexia como pertencente a uma natureza que não requer cuidados, a tendência seria a autodestruição. A anorexia é uma desordem alimentar, e a posição oficial sobre a homossexualidade a considera como algo parecido, como uma desordem. Isto é muito diferente de comparar a homossexualidade com a situação das pessoas canhotas. Ou seja, os canhotos são uma variante minoritária dos seres humanos, não uma patologia. A anorexia é uma patologia. Porém, para sustentar que todos os atos homossexuais são maus, a Igreja precisa manter a versão de que a homossexualidade é uma patologia.

Muitos bispos dizem aos homossexuais que eles não têm nada contra a homossexualidade, que nós somos todos irmãos, etc... mas, ao mesmo tempo, colocam a condição de que se abstenham de todos os atos que consideram intrinsecamente maus, como se fosse possível fazer uma distinção.
    
Nesse sentido, o Vaticano é mais honesto, porque sabe muito bem que caso queira dizer que os atos homossexuais são maus, precisa concluir que a homossexualidade é uma desordem objetiva. E nesta altura, em pleno século XXI, vale a pena se questionar sobre a verdade disto.

O que os cientistas dizem a este respeito?

Os cientistas (e não estamos falando apenas de “ciências brandas” como a psicologia, mas da química, endocrinologia e neurologia, etc.) que estudaram os hormônios intrauterinos, a configuração neuronal, etc., dizem que a homossexualidade é uma variante minoritária, e não patológica, da condição humana. Ou seja, muito mais parecida com o fato de ser canhoto do que ser anoréxico.

É frequente a pergunta sobre se o homossexual nasce ou se torna...

É uma mistura das duas coisas, mas está mais ligado ao nascimento. O mais provável é que seja uma questão intrauterina, embora as pesquisas sobre este tema ainda estejam começando (porque faz apenas 30 ou 40 anos que foi possível começar a pesquisar esta questão, sem o viés moralista). Os avanços na neurociência indicam que ninguém que já não seja gay ao nascer, torna-se gay depois.

Isso invalida a tese, sustentada por algumas pessoas, de que se trata de uma questão de vício.

Exatamente. Toda a tendência anterior consistia em tratar o assunto como se fosse uma patologia ou um vício, e isto era uma questão cultural, não apenas eclesiástica. Somente nos últimos 50 anos é que se começou a olhar para os gays de forma mais científica, perguntando-se sobre o que é e o que faz com que estas pessoas sejam diferentes, ao invés de pensar que estão fazendo maldades e de que é preciso castigá-las.

Essa dinâmica de revisão, percebida na sociedade civil, custa mais para a Igreja?

Muito mais.

Existem pessoas que continuam dizendo que a homossexualidade é reversível?

Sim. Infelizmente, precisam continuar dizendo, caso queiram manter a atual posição da Igreja. É uma ciência “concordista”, assim como os geólogos do século XIX, que queriam manter a teoria de que a composição da terra estava de acordo com o relato da Criação, em seu sentido pré-científico, e que buscavam infelizes formas de demonstrar como supostamente a ciência e a realidade se ajustavam aos ensinamentos eclesiásticos.

A moral dupla é uma das coisas que as pessoas mais reprovam na hierarquia, ou seja, dentro da instituição há muitos homossexuais (embora nem todos reconheçam).

Claro, mas não podem reconhecer isto.

Entretanto, o próprio Papa acaba de denunciar que no Vaticano há um lobby gay.

Bom, acredito que a palavra denunciar não descreve bem a intenção das declarações do Papa. O que ele fez foi reconhecer isto com bom humor. Pelo menos da forma como a informação nos chegou, parece que foram frases soltas, ditas com essa leveza que nós já sabemos que faz parte do estilo do Papa. Graças a Deus, porque isso significa que este Papa tem um estilo muito mais de encontro e diálogo.

Agora, quando o assunto do lobby gay sai da boca de altos eclesiásticos, costuma significar duas coisas. A primeira coisa é que consideram lobby toda pretensão científica de apontar que a realidade não é da forma como o Vaticano diz (por exemplo, qualquer pessoa que viesse a sugerir que, talvez, estejamos diante de uma variante minoritária não patológica), e que supostamente isto exerceria pressão (como parte do “poderoso e influente lobby gay”) contra aqueles outros cientistas que mantém a “linha dura” de pretensa cientificidade a respeito da questão homossexual. Mesmo que atualmente seja apenas uma minoria de psiquiatras, já é o suficiente para que a hierarquia eclesiástica se agarre em sua própria lógica. Nesta altura do jogo, isto soa um pouco paranoico, pois os gays seriam muito maus, mas, quem acredita que são tão poderosos? Portanto, neste caso, a palavra “lobby gay” é utilizada para se referir às pessoas que não estão dentro da cúpula do Vaticano, mas fora.

O outro uso veio à luz a partir da investigação feita por três cardeais com mais de 80 anos, que deixaram um tijolo de dossiês para Ratzinger ou para seu sucessor. Entre os vários assuntos investigados, estava a questão de um suposto lobby gay. Agora, para quem já visitou o Vaticano, não existe a menor dúvida de que, aí, há uma forte presença do setor gay. É evidente, e através de amigos dos amigos todo mundo mais ou menos se conhece. O que também se percebe é que o mundo romano é um mundo onde a regra moral está em evitar o escândalo. Portanto, para que não se evidencie ninguém, estas questões preocupam muito. E isto não supõe apenas uma dupla moral, como também uma antiquada maneira de viver. Grande parte do problema, no meu modo de ver, é que o mundo moderno e esse mundo antiquado não convivem juntos. Enquanto no mundo moderno a transparência e a honestidade são cada vez mais normais, o mundo antiquado é monossexual, masculino, e continua sendo regido pela regra básica de: “contanto que você não conte, você também pode fazer”.

Essa regra na sociedade civil já não pode se sustentar?

Não. Desde o início do século XX, influenciado por Freud e por outros autores, o mundo todo compreendeu a importância de poder ser sincero nesta matéria, de poder falar mais ou menos honestamente daquilo que se é e o que se faz em matéria sexual. E, atualmente, parece ser um fenômeno global, mais “popularizado” no Ocidente, e que exerce uma fortíssima pressão sobre as sociedades que quiseram manter seu “escudo sagrado” sobre um código ao qual se obedecia, mas não se cumpria.

O “escudo sagrado” da Igreja poderia vir abaixo, caso fosse reconhecida a liberdade sexual?

Isto será uma prova muito forte para o papa Francisco. Uma prova para a qual eu desejo tudo o de melhor para ele, porque não duvido que será doloroso, difícil e, sobretudo, muito custoso, porque há muitíssima pressão das próprias pessoas que vivem no Vaticano e do clero em geral. Confessar a homossexualidade significaria apenas ser honesto.

Precisar ficar ocultando a própria sexualidade não supõe uma esquizofrenia vital?

Sim. É uma esquizofrenia que tem consequências psicológicas muito duras, mas na qual se acostuma. E isto abre um mundo todo de chantagem, porque ninguém pode ser honesto, mas todo mundo sabe o que os outros fazem. Imagine os jogos de chantagem que podem ser feitos. Isto é evidente, e não estamos falando apenas de uma coisa eclesiástica. Se os governos norte-americano e britânico, nos anos 1950 e 1960, resolveram esta questão a respeito de suas próprias sociedades, suas próprias burocracias, seus próprios serviços de inteligência, etc., foi precisamente porque o assunto da chantagem resultava ser pior do que a questão da homossexualidade.

Ou seja, a Igreja deveria fazer o mesmo, ainda que fosse por pragmatismo?

Seria mais pragmático, sim, mas o caso é que quando se reconhece a homossexualidade e se vive honestamente (tenha ou não parceiro), torna-se necessário reconhecer também que uma relação gay pode ter boas consequências. Isto não obriga ninguém a segui-las, mas, no momento em que se reconhece que uma relação entre duas pessoas do mesmo sexo pode ser boa, fica reconhecida a possibilidade de que existam atos sexuais, não abertos à procriação, que também são bons, e com isso toda a moral heterossexual tradicional desmorona. Porque a moral tradicional depende do fato de todos serem intrinsecamente heterossexuais, e de que exista apenas uma forma sexual que pode ser boa.

Quer dizer que se a Igreja aceitasse a homossexualidade, seria preciso uma revisão de toda sua moral sexual tradicional, a partir dos alicerces?

Sim, mas é uma revisão que já foi feita. O que acontece é que para estes senhores custa reconhecer.

Em nível de práxis,  já se vive, mas falta a aceitação na doutrina?

Na prática, qual a porcentagem de fiéis que está de acordo com a Humanae Vitae? Pouquíssimos. E é fácil imaginar que a porcentagem de fiéis gays, de acordo com essa doutrina, é menor ainda, porque requer que sejam considerados heterossexuais defeituosos, para que sejam mantidos.

Em razão desta situação, a Igreja provoca dor?

Muitíssima, porque a Igreja tenta dizer que a voz de Deus não está dizendo o que a voz de Deus está dizendo para você. Todo jovem gay, que mantém a fé (porque, é claro, ao escutar as malvadezas que saem da boca de alguns de nossos altos hierarcas, muitos ficam simplesmente escandalizados e abandonam), precisa passar pelo processo de superação do escândalo em distinguir a voz de Jesus (que disse que o ama, que quer acompanhá-lo e que quer viver com ele) da voz da Igreja, que faz vista grossa enquanto você não disser o que é. Para qualquer pessoa, isto é um doloroso processo de crescimento espiritual.

Para um seminarista, um noviço ou um sacerdote com vocação religiosa, ocultar sua homossexualidade suporia negar a si mesmo ou parte de si mesmo?

É um caso especialmente duro, no qual se percebe muito bem a dupla mensagem que a instituição eclesiástica oferece, pois, ao mesmo tempo em que mantém um discurso homófono, também (ao menos em muitos países do mundo) oferece acesso totalmente livre para seminaristas ou noviços de índole claramente gay, induzindo-os a viver uma vida dupla, baseada no “faça isso, não faça isso”. Com duas ordens contraditórias ao mesmo tempo, você fica paralisado. Um padre gay, por exemplo, pensa que precisa dizer a verdade porque mentir é contra o Evangelho; porém, ao mesmo tempo, sabe que caso diga a verdade, ele está fora. Pedem para que exijam transparência em tudo, mas eles próprios não podem ser transparentes.

Em sua vida pessoal, como você próprio conseguiu encaixar esta situação de duplicidade?

Bom, mais ou menos catastroficamente, aos trancos e barrancos. No passado, muitos e muitos anos atrás, graças aDeus, tive algumas experiências muito fortes, que me permitiram ver a absoluta diferença entre aquilo que é de Deus, nesta matéria, e o que, ao contrário, são os mecanismos humanos de criação de inimigos desnecessários.

Você passou por diferentes etapas (de pena, de indignação, de dor...) a respeito da Igreja?

Sim. Nesta altura do jogo, eu considero um enorme privilégio poder viver e falar tranquilamente desta realidade, mesmo sendo um fiel e um sacerdote católico, sem que isto seja um assunto de raiva. Porque a raiva destrói a própria pessoa, não os demais. No passado, o que mais me indignou não foi a violência das pessoas más, mas o silêncio dos bons. Isto é o que dói: as pessoas boas, as pessoas moderadas e as pessoas inteligentes (que existem) sabem que a situação é insustentável, mas guardam silêncio, preferem não dizer nada.

Você vê saída para esta situação?

Sim. Não sei como vai se dar, mas vejo saída pela necessidade da honestidade, que é uma regra cada vez mais imperativa. O papa Francisco poderia recorrer às armas sagradas, ou seja, retornar às soluções do tipo: “Se existe lobby gay, vamos fazer uma caça às bruxas”. O problema disto é que, embora pudesse dar prazer, durante determinado tempo, para alguns da linha dura, não funcionaria. E não funcionará porque os que fariam a caça às bruxas seriam tipicamente gays reprimidos. Aqueles que mais perseguem os gays na Igreja, são gays reprimidos. Aos heterossexuais não importa tanto, não parece ser tão interessante para eles, não se preocupam do mesma forma que os próprios gays camuflados.

Ou seja, os que mais perseguem e metem o pau são, no fundo, homossexuais reprimidos?

Ou reprimidos, ou que sabem muito bem o que precisam assumir para fazer carreira em certas coisas. Não há engano: diante da necessidade persistente de atacar os gays, costuma haver homossexualidade reprimida.

Você não acredita que Francisco assumirá a primeira saída?

Tomara que não, porque não resolve nada. Apenas prorroga uma situação.

A segunda saída é muito mais delicada, mas é a saída da maioridade. Consiste em reconhecer que existe um problema grave, que possui consequências em todos os âmbitos da vida (porque uma vez que você solta um dos parafusos do escudo sagrado, possui consequências em todos os níveis). Quantos sacerdotes existem, cujos votos ou promessas de celibato não são nulos? Porque foram feitos sob falsa consciência. Tiveram que dizer que acreditavam numa caracterização deles próprios para poder emitir um voto que não era correto. Imagine as consequências canônicas disto. Então, de que maneira se agirá para obter o início de certa transparência na discussão? Provavelmente, o máximo que pode fazer é motivar as congregações romanas para que, ao menos, concedam a possibilidade de que seja falado abertamente disto. Porque este assunto não irá desaparecer.

Porque o Povo de Deus não é o problema. A este respeito, o Povo de Deus está muito avançado. A dificuldade está em poder falar disto no mundo clerical. E isto significa que há um lobby gay fortíssimo dentro da Igreja, e que dominou o espaço nos últimos anos: o lobby dos gays auto-reprimidos. Porque eles são os que mais necessidades psicológicas possuem em manter as coisas como estão, o que permite que mantenham certa noção antiquada de bondade, além de manter claramente o sistema.

A chegada de Francisco causou esperança em você? Acredita que ele pode trazer ar fresco à Igreja?

Sem dúvida. E é um alívio perceber que o assunto da homossexualidade não é muito importante para ele. Quanto mais heterossexuais tivermos em lugares importantes da Igreja, mais facilmente será resolvida a questão homossexual, porque tradicionalmente os problemas são provocados por pessoas com muitas complicações internas. Parece que não é um grande problema para o papa Francisco, e que é capaz de tratá-lo com certo humor e com certa distância, e isso é um bom sinal.

Você acredita que ele irá conseguir fazer reformas?

Caso se deixe guiar por aquilo que até agora insistiu (retornar a Jesus e ao Evangelho), claro que conseguirá as reformas, porque isso significa que outras questões que são também um pouco barrocas, por si mesmas, irão perder importância.

Eles vão deixá-lo?

Bom, é preciso rezar para isso. Depende das agressões que sofrerá. O Papa é um alto funcionário de uma grande burocracia, e como todas as instituições, os grandes aparatos burocráticos têm suas formas de se defender e se proteger, além de cooptarem seus membros para que se comportem de determinadas formas.

Não podemos pensar em Francisco como uma espécie de salvador vindo de fora para remediar uma situação insuportável. Francisco é um homem eclesiástico que viveu seus últimos 76 anos dentro da própria instituição, e tomara que com seu frescor e sua capacidade pessoal de tomar decisões com tempo e de escolher pessoas com bons critérios para rodeá-lo, resulte melhor que os papas passados. João Paulo II tinha muitas qualidades, mas não exatamente com as pessoas que o rodeava. E, em definitivo, acredito que a questão gay é de muito maior fôlego (tanto para se abrir como para se fechar) para que uma só pessoa resolva.

Até agora estou encantado com Francisco, mas não acredito que preciso atribuir-lhe poderes divinos.

De alguma forma, ele poderia nos decepcionar?

Claro, porque as expectativas são altas. Há muita expectativa, e eu estou muito agradecido pelo trabalho que você realizou, junto com seus companheiros de Religión Digital, descobrindo uma grande ansiedade por uma Igreja mais fresca. É um alívio poder retornar ao Vaticano II sem tendências barrocas e clericais.

O medo está sendo rompido na Igreja?

Não apenas o medo. Estamos percebendo que o sentido de tudo isto é ser cristão, não o de entrar em infinitas discussões sobre a hermenêutica da continuidade ou se o Papa deve usar a mitra de Pio IX. Estas coisas, no final das contas, são bizarras.

Acredito que Francisco tem o dom de pessoas excelentes, e a capacidade de não se levar tão a sério, o que é uma característica importantíssima.

Algumas ideias-chave da entrevista:

- Para recuperar o sentido de que a fé cristã é boa nova é preciso escavar no espaço dos escombros do moralismo dos últimos dois ou três séculos, para tentar recuperar algo do frescor do Evangelho.

- O que busco é um novo paradigma de uma ortodoxia completa, porque se baseia em retornar a um paradigma muito mais antigo do que a doutrina moral sexual da Igreja.

- Se o que Jesus disse está correto, como se explica esta miséria de tramas moralistas que entramos? Porque é tão evidente que não foi assim no início!

- Não acredito que a questão gay seja algo sumamente difícil de ser aceita pelos fiéis católicos, mas pelo estamento clerical católico.

- Diferente de outras questões de tipo moral, como o aborto, por exemplo, em relação à questão gay o povo não está alienado como os bispos.

- A homossexualidade é uma variante minoritária, e não patológica, da condição humana.

- Ver-se obrigado a ocultar a homossexualidade é uma esquizofrenia que tem graves consequências psicológicas.

- No momento em que se reconhece que uma relação entre duas pessoas do mesmo sexo pode ser boa, é reconhecida a possibilidade de que existam atos sexuais em si, não abertos à procriação, e com isso toda a moral sexual tradicional desmorona.

- A porcentagem de católicos que concordam com esta doutrina sexual é muito baixa, “porque requer que os gays sejam considerados heterossexuais defeituosos.

- O que mais me indignou não foi a violência das pessoas más, mas o silêncio dos bons.

- Aqueles que mais perseguem os gays na Igreja, são gays reprimidos.

- Há um lobby gay fortíssimo dentro da Igreja, e que dominou o espaço nos últimos anos: o lobby dos gays auto-reprimidos.

- Até agora estou encantado com Francisco, mas não acredito que preciso atribuir-lhe poderes divinos.


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publicado por Riacho, em 27.06.13 às 23:29link do post | favorito

Artigo de Pierre-Israël Trigano

Longe de condenar a homossexualidade, o Levítico convida a humanizar a relação do masculino e do feminino no casal.

A análise é do filósofo e psicanalista francês Pierre-Israël Trigano, autor de L'inconscient de la Bible [O inconsciente da Bíblia] (Edições Réel, 7 volumes). O artigo foi publicado no sítio da revista Témoignage Chrétien, 20-06-2013. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

A perseguição multissecular dos homossexuais em nome da Bíblia até à rejeição violenta da lei que lhes autoriza ao casamento hoje se construiu essencialmente em torno da leitura de um mandamento do Levítico (Lv 18, 22): "Não te deites com um homem, como se fosse com mulher: é uma abominação".

Lida assim, a proibição não tem apelação. E é nesse sentido que o judaísmo e o cristianismo excomungam os homossexuais, com toda sã consciência. Mas o texto hebraico desse versículo, em sua constituição, é um dos mais obscuros da Bíblia. É o sinal indubitável que está cheio de um inconsciente portador de um sentido inédito.

Considerado na sua literalidade, podemos traduzi-lo assim: "Com um macho [zékher] tu não coabitarás [verbo no masculino] os estados de estar deitado [as "coabitações", os "leitos"] de mulher [ishah]".

Poder-se-ia muito bem dizer que esse versículo, em grande parte, é incompreensível, e que o modo pela qual as Igrejas o traduzem é uma extrapolação da versão grega da Septuaginta, não traduzida do original hebraico. Se a Torátivesse querido ter como alvo diretamente a homossexualidade, ela o faria de maneira mais clara, em termos mais diretos. Além disso, não se vê por que ela ignoraria a homossexualidade feminina.

Voltar à literalidade do texto

Constatamos, em primeiro lugar, que em nenhuma parte do texto se encontra a palavra "como" que estabeleceria uma comparação entre uma relação sexual com um homem e uma relação sexual com uma mulher.

Literalmente, nesse versículo, a questão é o homem "coabitar" os "leitos" de mulher. Como ver aí qualquer referência à homossexualidade? Ao contrário, essa estranha fórmula poderia evocar relações sexuais do homem com as mulheres.

Em segundo lugar, a palavra traduzida como "mulher", ishah, aparece pela primeira vez na Bíblia em Gênesis 2, no relato da Criação da mulher. O seu contrário, designando "o homem", é ish. Seria de se esperar encontrar essa palavra no versículo para designar o oposto da mulher. Ao invés, é a palavra zékher, o "macho", que encontramos no texto, que tem como polo oposto a palavra néqévah, a "fêmea". Essas duas palavras fazem sua aparição em Gênesis 1, no relato da Criação do ser humano.

Pelo fato de o Levítico se referir a zékher, o "macho", logicamente deveríamos encontrar no versículo néqévah, "a fêmea", em vez de ishah, "a mulher". Como compreender essa diferença?

"Macho" e "fêmea" são categorias pelas quais a Bíblia (Gn 1, 27) qualifica o ser humano que acaba de ser criado por Deus: "Macho e fêmea os criou". Além disso, a Igreja se serve igualmente desse versículo para afirmar sem apelo que só o matrimônio "de um pai e de uma mãe" é a norma divina para fundar a família humana.

Ora, é preciso ver que "macho" e "fêmea" são categorias animais e não humanas. Elas caracterizam uma humanidade primitiva que sai ainda com dificuldade da animalidade.

É precisamente a emergência de tal humanidade, arcaica, original, ainda não totalmente realizada, que Gênesis 1descreve. Certamente lá está escrito que ela foi criada "à imagem e semelhança de Deus", mas se trata de um potencial divino de humanização que ainda não está ativo na origem e que está em jogo em toda a evolução humana.

Masculino e feminino arcaicos

As categorias animais zékher e néqévah expressam o estado de violência que caracteriza a humanidade arcaica da qual será difícil sair por parte dos seres humanos, homens e mulheres.

O surpreendente poder significante do hebraico bíblico nos ajuda a compreender isso, em particular pelas possibilidades de releitura que ele oferece. Com efeito, essa língua é puramente consonântica, e as vogais não estão fixadas nos manuscritos originais. A mesma palavra, associada a vogais diferentes, assume significados insuspeitos à primeira leitura e manifesta assim, sutilmente, um "inconsciente" da experiência humana que ela simboliza.

Há, por exemplo, o caso, muito impressionante, da palavra néqévah, "fêmea", que nós podemos reler comonéqouvah, portadora de um significado terrível para a condição feminina: a "perfurada", a "maldita"! Essa palavra nos revela, assim, sem dúvida alguma, que, na humanidade mais arcaica, ainda animal e "primata", a mulher é reduzida à condição de "fêmea" dominada, esmagada pelos "machos", como é ainda hoje nos clãs dos chimpanzés, os nossos primos animais mais próximos.

A psicologia do zékher

Mesmo que nas tribos primitivas chamadas "matriarcais" as mães tivessem um certo poder, certamente não era o caso das filhas, reduzidas a objetos de troca entre clãs, em benefício dos "machos".

E eis precisamente o que nos sugere a palavra zékher, que designa estes últimos: pronunciada zakhor, ela expressa a ação de lembrar. Ao fazê-lo, o espírito da língua hebraica parece nos ensinar que é o poder dos "machos" que organiza a "lembrança" da origem, a fidelidade às linhagens arcaicas da humanidade e, portanto, a repetição dos maus-tratos feitos às mulheres de geração em geração.

É a psicologia do zékher, o masculino arcaico e violento, que deseja manter e perpetuar na cultura humana as mulheres e a feminilidade na condição maldita de "fêmea" inferiorizada, violentada e humilhada.

Outra caracterização dos gêneros surge em Gênesis 2 com as palavras ish e ishah, "homem" e "mulher". Seria necessário dissipar muitas contradições que a tradição (investida pelo zékher) acumulou com relação a essas palavras. Algo impossível de estudar dentro dos limites deste artigo.

Constatamos simplesmente que elas significam "esposo" e "esposa", e são, portanto, categorias eminentemente relacionais. Elas designam uma humanidade finalmente humanizada, que saiu do arcaísmo "animal", na qual, portanto, a relação de amor pode desabrochar. É revelador o fato de que a palavra ishah, "mulher", pronunciadaéshéh, significa: "Eu esquecerei...".

Maus tratos às mulheres

O "macho" no ser humano quer organizar a lembrança do arcaísmo violento e desumano da origem animal, enquanto a "mulher" no ser humano "esquecerá"! É uma promessa profética trazida pela ishah. Virá um tempo de cumprimento em que os maus-tratos feitos às mulheres e à feminilidade serão esquecidos.

Nesse ponto, o sentido do versículo se esclarece. Ele ordena ao homem que acima de tudo não entre na coabitação (sexual, mas também em todos os domínios da vida de casal) com ishah, a mulher, com o (com base no) espírito dozékher, o masculino arcaico sem amor e violento.

Ishah é a mulher, mas também, no plano arquetípica, é a feminilidade, a capacidade de abertura ao outro e de amor, presente no homem assim como na mulher.

Assim, esse versículo, bem longe de proibir formalmente a homossexualidade, é, ao contrário, a injunção divina a cuidar de toda relação de coabitação e de casal, qualquer que seja o/a parceiro/a que se tenha, de fundá-la no amor, na ternura e, portanto, de cultivar o desabrochar da feminilidade em si e no outro, em vez de feri-la sob os golpes do egocentrismo masculino arcaico de onipotência.

Como se vê, essa injunção pode interpelar tanto os casais homossexuais quanto os heterossexuais, sem lançar o anátema sobre qualquer categoria de seres humanos.

Questionamento ético

O seu questionamento não é legalista, mas sim ético. Ele não se contenta com uma aplicação "técnica" que seria aqui a recusa ou a repressão da homossexualidade, como a tradução habitual levaria a pensar. Mas ele abre uma busca ética sobre o fundamento da relação que cada um, quem quer que seja, enlaça com um outro, quem quer que seja, como ser humano.

E essa busca é, em si mesma, um caminho de vida que visa a favorecer cada vez mais o amor, a enfatizar a feminilidade (dos homens assim como das mulheres) ferida pelo zékher. Seguramente não se pode utilizar a Bíblia hebraica, portanto, para condenar a homossexualidade.

Toda a minha pesquisa demonstra que ela veicula no seu texto hebraico um "inconsciente" que espera ser redescoberto, portador de um sentido que revoluciona as interpretações da tradição judaico-cristã e que subverte a redução despótica e moralista da religião. Esse versículo é um testemunho característico disso.

PARA LER MAIS:


Fonte: http://www.ihu.unisinos.br/noticias/521416-a-biblia-hebraica-nao-e-homofobica-artigo-de-pierre-israel-trigano


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publicado por Riacho, em 18.06.13 às 22:26link do post | favorito

Um testemunho muito bonito da dirigente máxima do FMI relativo ao seu primo gay que projecta sinais de esperança num mundo mais tolerante.

 

 


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