O antigo mestre-geral da Ordem dos Pregadores (Dominicanos) profere duas conferências no Convento de São Domingos, em Lisboa, dias 28 e 29 deste mês.
O frade dominicano Timothy Radcliffe falará sobre «How can the conscience of the Laity be heard?» (Como escutar a voz dos leigos na Igreja?) no dia 28 de janeiro e sobre «The holiness of the body» (A santidade do corpo) no dia seguinte.
Estas iniciativas são organizadas pela Família Dominicana, Instituto São Tomás de Aquino e o Movimento Nós Somos Igreja.
Fr. Timothy Radcliffe nasceu em 1945, em Londres, e é membro da Ordem dos Pregadores desde 1965.
Eleito mestre-geral dos Dominicanos em 1992, viajou por todo o mundo em visitas às diversas províncias da sua ordem.
O agora ex Mestre Geral da Ordem Dominicana é um proeminente defensor da proposta Kasperite em favor da comunhão para os "divorciados novamente casados."
Ele é também um defensor da ordenação de mulheres, senão para o sacerdócio, pelo menos para o diaconato. No entanto, ele tornou-se mais famoso pelas suas declarações públicas a favor de uma maior aceitação da homossexualidade, e por se ter tornado um celebrante das "Missas gays" em Soho, Londres.
O seu apoio às "uniões civis do mesmo sexo" e o seu louvor pelo “amor homossexual " são matéria de conhecimento público, e isso provocou devotos Católicos a fazerem de tudo para impedir que ele falasse na Conferência da Divina Misericórdia na Irlanda e em San Diego, Califórnia, bem como na Conferência da Juventude Flame 2, em Londres. Todas estas tentativas falharam e a aceitação de Radcliffe acaba de receber um reforço importante com a nomeação pelo Papa Francisco como Consultor para o Pontifício Conselho de Justiça e Paz.
Frei Betto publicou em sua coluna no site do jornal O Globo um artigo intitulado “Deus é Gay?”. No texto, ele faz uma série de elogios ao papa Francisco “por colocar a sexualidade no centro do debate eclesial”, afirmando que a postura do atual líder da Igreja Católica em trazer tais temas à discussão é uma atitude “contra o cinismo” predominante na instituição.
Ele afirma em seu texto que é necessário “reler o Evangelho pela ótica gay, como pela feminista, já que a presença de Jesus entre nós foi lida pelas óticas aramaica (Marcos); judaica (Mateus); pagã (Lucas); gnóstica (João); platônica (Agostinho) e aristotélica (Tomás de Aquino)”.
– Quem, como eu, transita há décadas na esfera eclesiástica sabe que é significativo o número de gays entre seminaristas, padres e bispos. Por que não gozarem, no seio da Igreja, do mesmo direito dos heterossexuais de se assumir como tal? Devem permanecer “no armário”, vitimizados pela Igreja e, supostamente, por Deus, por culpa que não têm? – questionou Frei Betto.
Ele afirma ainda que “a unidade na diversidade é característica da Igreja”, e ressalta que os evangelhos apresentam quatro enfoques distintos sobre Jesus. Frei Betto comenta ainda sobre as mudanças graduais das visões teológicas dentro do cristianismo.
– Até a década de 1960, predominava no Ocidente uma única ótica teológica: a europeia, tida como “a teologia”. O surgimento da Teologia da Libertação, com a leitura da Palavra de Deus pela ótica dos pobres, causa ainda incômodo aos que consideram a ótica eurocentrada como universalmente ortodoxa – destaca.
– Diante dos escândalos de pedofilia, dos 100 mil padres que abandonaram o sacerdócio por amor a mulheres, e da violência física e simbólica aos gays, Francisco ousa se erguer contra o cinismo dos que se arvoram em “atirar a primeira pedra – completa.
Colocando Jesus como exemplo de conduta, o religioso afirma que “a Igreja não pode discriminar ninguém em razão de tendência sexual, cor da pele ou condição social”, e reforça que “O que está em jogo é a dignidade da pessoa humana, o direito de casais gays serem protegidos pela lei civil e educarem seus filhos na fé cristã, o combate e a criminalização da homofobia”, que ele classifica como “um grave pecado”.
– A Igreja não pode continuar cúmplice e, por isso, acaba de superar oficialmente a postura de considerar a homossexualidade um “desvio” e “intrinsecamente desordenada” – afirmou o religioso.
– Deus é gay? “Deus é amor”, diz a Primeira Carta do apóstolo João, e acrescenta “o amor é de Deus, e todo aquele que ama nasceu de Deus e conhece a Deus.” E, se somos capazes de nos amar uns aos outros, “Deus permanece em nós” – destaca.
Um livro que parece ser uma longa carta ao Papa Francisco sobre a questão homossexual depois da famosa frase:"Quem sou eu para julgar um gay?". A pergunta da qual se parte: o que é a violência para Jesus? "Violência, paraJesus, é imputar aos diferentes, aos rejeitados e aos oprimidos que eles são constitutivamente negativos, colocando no coração da sua autoconsciência a culpa e o desprezo por serem o que são, mesmo não tendo feito mal a ninguém".
A resenha é da filósofa e jornalista italiana Delia Vaccarello, vencedora do prêmio For Diversity Against Discrimination, da União Europeia. O artigo foi publicado no jornal L'Unità, 07-05-2014. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Se a violência é induzir os "diferentes" a punirem a si mesmos com as próprias mãos, assimilando os ditames de uma doutrina segundo a qual a condição homossexual é uma tendência de "desordem objetiva", torna-se evidente a contradição entre o anúncio de salvação de Jesus e a condenação do amor gay e lésbico por parte da doutrina oficial católica.
Essa é a tese na base do livro de Paolo Rigliano, a partir do dia 12 de maio nas livrarias, intitulado Gesù e le persone omosessuali(ed. La meridiana), que abre à esperança. Com a carta-livro, Rigliano (autor, dentre outros, de Amori senza scandalo, Ed. Feltrinelli; Curare i gay?, Ed. Cortina) reúne entrevistas realizadas ao longo de quatro anos com personalidades de destaque entre as quais aparecem Alberto Maggi, Vito Mancuso, Franco Barbero, Elizabeth Green.
A questão dirigida a todos é: "como seguir Jesus?". E ela é formulada a partir deste princípio: "Para Simone Weil, violência é impor aos outros – os oprimidos – que sonhem e realizem o sonho do dominador, egocêntrico e exclusivo. A mensagem de Jesus nega na raiz essa violência, toda violência: compromete a criar as condições interiores e exteriores para que floresça o desejo e o sonho de cada um – dos diferentes e dos rejeitados em primeiro lugar".
A pergunta, então, torna-se uma vara divinatória que busca uma solução capaz de promover uma "relacionalidade nova" reconhecida pela doutrina: "Eu perguntei aos meus interlocutores como seguir Jesus e, portanto, dialoguei com eles sobre por que e como realizar uma acolhida integral da vida e do amor das pessoas lésbicas e gays: como fundamentá-lo e anunciá-lo, como antecipá-lo e suscitá-lo".
Das respostas de Elizabeth Green, vem à tona que Jesus não fala de homossexualidade porque isso não lhe interessa, porque o Evangelho "nos liberta da necessidade de criar categorias como 'homossexuais', 'mulheres', 'imigrantes', das quais eu tenho que me separar e que eu tenho que excluir para conseguir ser eu mesmo ou eu mesma".
Para Green, a "grandeza de Jesus está no fato de que ele se faz próximo de todos e de todas, vai ao encontro de todos e de todas", enquanto a oposição heterossexualidade/homossexualidade enrijece, multiplica as exclusões, engessa a sexualidade.
Alberto Maggi convida a buscar novas respostas: "A grande força que Jesus deu ao Evangelho é quando ele diz: 'O Espírito os acompanhará nas coisas futuras'. Ou seja, a comunidade tem a capacidade, graças ao Espírito Santo, de dar novas respostas às novas necessidades. Não se pode dar respostas velhas para as novas necessidades, portanto não se pode buscar nas Escrituras respostas a essa problemática".
Maggi se mostra confiante nas capacidades da Igreja de encontrar caminhos para evitar a exclusão, justamente porque os fechamentos sobre a sexualidade são e foram muito fortes, a ponto de serem paradoxais, e a reflexão está em andamento: "Ora, o pecado do divórcio é pior do que o de homicídio - diz o padre de Marche –, porque, se você matar a sua esposa e depois se arrepender, você retorna novamente à comunhão da Igreja. Mas se você se divorciar, não há mais perdão para você. É possível que seja mais grave se divorciar de um cônjuge do que matá-lo? Portanto, há comissões estudando isso, também o divórcio e a condição homossexual".
A propósito de "lei natural", com base na qual a homossexualidade é definida como "contra a natureza", Vito Mancusofornece uma leitura alta disso, alinhada com os Evangelhos: "A lei que vivifica a natureza é a lei da relação. Tudo o que favorece a relação está em conformidade com a lei natural; tudo o que impede a relação é contrário à lei natural". E o Evangelho é "relação que busca alimentar os outros a ponto de se fazer alimento, relação que se esvazia para saciar os outros". Portanto, argumenta Mancuso, o Evangelho diz "que esses afetos que você desenvolve em nível físico devem poder ser vividos sob a insígnia da relação total harmoniosa".
Com uma prosa discursiva, o livro, através dos diálogos, mostra como o livre pensamento está presente dentro da Igreja. Ele oferece aos fiéis homossexuais uma nova forma de ler a própria experiência, colocando em primeiro lugar não a lei que exclui, mas sim a relação e o amor de Deus. Ele se inscreve no rastro da interrogação traçada pelo Papa Francisco.
Com Brokeback Mountain, adaptação do conto de Annie Proulx que já dera origem ao filme de Ang Lee sobre a história de amor entre dois cowboys do Wyoming, o ex-director do Teatro Real de Madrid, Gerard Mortier, concretiza a sua ideia de que se a ópera é entretenimento para público liberal, serve para discutir os grandes temas da sociedade. A aposta era arriscada, a expectativa elevada - e a discussão vai continuar.
Um imenso palco branco e vazio. Um corpo enorme, de negro, como um corvo a marcar o seu território. As primeiras notas, agudas, a sublinharem a desolação das montanhas rochosas do Wyoming fixadas num filme projectado em toda a extensão do palco. E, no entanto, na plateia o ambiente não era nem frio nem temeroso. Antes de se confirmar a tragédia que já todos conheciam, porque tinham lido o livro e visto o filme, a estreia de Brokeback Mountainera, foi, um acontecimento como Madrid nunca vivera.
Na noite de terça-feira era mais do que a capital espanhola. E o Teatro Real mais do que um teatro de ópera. A estreia mundial de Brokeback Mountain, que adapta o conto de Annie Proulx, era a mais aguardada da temporada e um dos projectos que há mais tempo o ex-director do Teatro Real, Gerard Mortier, acalentava. Na plateia a fina-flor das direcções artísticas dos teatros de ópera do mundo, de Los Angeles a Amesterdão, de Londres a Nova Iorque esperava para saber como era possível responder à expectativa que há meses vinha sendo criada pela adaptação à ópera do conto que serviu de base, em 2005, ao filme de Ang Lee sobre dois guardadores de rebanhos que se apaixonam nas áridas montanhas do homofóbico Wyoming americano.
Entretenimento e grandes temas Ivo van Hove, o encenador, juntou os silêncios inquisitivos de Lágrimas e Suspiros (Bergman) aos desencontros afectivos de Noite de Estreia eHusbands (Cassavetes), prolongou o olhar sobre o homem em perda – de poder (Ludwig, de Visconti), de identidade (Teorema, de Pasolini), de afirmação da masculinidade (Rocco e os seus irmãos, novamente Visconti) – e, tal como fizera com Anjos na América (Tony Kushner), esventrou a América profunda pelo seu lado mais racional, desapossando-a do sonho americano, onde o individual sucumbe ao colectivo.
Brokeback Mountain, a ópera, pode ter sido recebida com aplausos moderados mas, ao longo de duas horas, os corpos, e as vozes, de Ennis del Mar e Jack Twist, eram, mas mãos de Ivo Hove, nas palavras de Annie Proulx e na partitura de Charles Wourinen, uma reflexão sobre a negação da condição humana. O desenho diagonal dos movimentos dos cantores entrava em diálogo com a aspereza ferida das palavras e, por vezes, parecia proteger-se da partitura, ela própria avançando e recuando como que provando que repressão e cumplicidade são ideias e sentimentos gémeos ou complementares.
O compositor diria, no encontro com a imprensa, que pretendeu “reflectir sobre algo que é universal de um modo que pudesse falar a um público contemporâneo” – intenção ao encontro da de Mortier, que, em 2009, o convidou após ter lido no New York Times um artigo onde Wuorinen mostrava o desejo de adaptar Proulx. Na altura, Mortier era ainda director do New York City Opera e, especulava o Financial Times esta semana, era impossível não imaginar que “quisesse, pelo menos de alguma forma, chocar o público com uma obra dodecafónica”. Este é, lembra o jornal, o homem que “liderou o gosto europeu ao longo da década em que esteve à frente do Festival de Salzburgo, provocando o público até à raiva e ao confronto, que definiu o perfil da agreste Trienal de Ruhr, que fez estalar o verniz em Paris e irritou Nova Iorque, construindo públicos por onde quer que passasse”.
Mas, tantos anos passados, a intenção de Mortier era outra. No encontro com a imprensa espanhola, contava o El País, Mortier tinha sido mais contundente do que com a imprensa internacional ao fim da tarde, encontro em que o PÚBLICO esteve presente: “Quando apresentámos esta ópera ao conselho de direcção, houve uma pessoa que me perguntou: ‘Mortier, de que público está à procura com esta produção? Disse-lhe: ‘Um público liberal que possa discutir grandes temas. Sabemos que muitos homossexuais são ainda descriminados”. Não escondera, de manhã, que “esta era uma escolha política, no melhor sentido da palavra” e, à tarde, explicou melhor em que constitui a sua ideia de ópera: “A ópera é entretenimento, mas isso não nos deve impedir de discutir os grandes temas da sociedade”. Na manhã seguinte o El Mundo trazia na primeira página “o êxito dos vaqueiros gays de Mortier” e, lá dentro, explicitava que “o impacto mundial [provocado pela ópera] não se explica sem a despedida de Gerard Mortier”, mesmo que fosse claro que não se podia dizer “ser uma montagem arriscada nem com cenas polémicas”. Na sala, as reacções às cenas íntimas entre Ennis del Mar (Daniel Okulitch) e Jack Twist (Tom Randle) foram recebidas com relativa indiferença por uma plateia que combinava os visons de quem podia pagar 363€ e as calças de ganga dos bilhetes de última hora a 36€.
O compositor Charles Wuorinen, segundo Mortier “um profundo americano de traços europeus”, explicara momentos antes da estreia que Brokeback Mountain não pretendia ser “uma obra ideológica mesmo que o seu contexto de produção contemporâneo nos leve a reconhecer um assunto que muito nos diz e que não é ainda universalmente aceite”.
Esperava-se mais E, por isso, esta ópera sobre a sociedade americana – tanto quanto The Perfect American, de Philipp Glass, estreada há um ano e uma biografia amarga sobre Walt Disney – é uma ópera sobre a sociedade actual. O que explica a expectativa que rodeou a estreia, a abstracção da encenação, a educação dos aplausos e a ambiguidade da recepção crítica. Brokeback Mountain pode ser sobre a América profunda e homofóbica que Annie Proulx relatou na década de 80 em frases curtas, mas as decisões ambíguas e os lancinantes mal-entendidos entre Ennis e Jack, bem como os espelhos sociais que surgem contrastados nas famílias de um e de outro, são o microcosmos que disseca a realidade que existe à volta do palco do Teatro Real.
Oito anos depois da intenção de Mortier, e quando em economias emergentes como a Rússia e a Índia ou em vários regimes africanos a repressão dos homossexuais é ainda uma realidade por erradicar, ou nos tribunais americanos se fazem e desfazem leis sobre direitos e garantias, é difícil não projectar expectativas numa nova leitura daquela que se constituiu – por força do filme de Ang Lee e para surpresa de muitos - na maior referência junto de um público transversal. O compositor defendeu-se dessa expectativa afirmando estar a fazer “aquilo que foi sempre feito no palco e na escrita”, ou seja, dar forma artística e espaço público a histórias universais.
Brokeback Mountain, a ópera, pode ter sido recebida com aplausos moderados mas, ao longo de duas horas, os corpos, e as vozes, de Ennis del Mar e Jack Twist, eram, mas mãos de Ivo Hove, nas palavras de Annie Proulx e na partitura de Charles Wourinen, uma reflexão sobre a negação da condição humana.
Esperava-se sobretudo mais quando, na história da ópera, a homossexualidade é um tema pouco comum. Escreveu o Welt: “A ópera já deu forma a deuses e monstros, patifes e santos, cortesãs e castrados. É também uma arte de e para homossexuais. Mas homens que se amam tínhamos, até agora, visto e ouvido muito pouco. A ambivalência sexual é escondida em papéis de calças e mascarada em intrigas mais formais”. Antes de Alban Berg ter adaptado os dois livros de Frank Wedekind Espírito da Terra e A Caixa de Pandora e criado Lulu, em 1935, nunca uma personagem tinha sido definida pela sua sexualidade como a Condessa Martha Geschwitz, apesar, por exemplo, de já em Rossini, com Semiramide (1823), e, mais tarde, em Strauss, com Der Rosenkavalier (1911), ser explorado o amor entre duas mulheres. Na história da música o nome de Benjamin Britten é referente máximo e Charles Wuorinen citou-o a propósito dos antecedentes da ópera com personagens gays. Peter Grimes (1945), Billy Budd (1951) mas, sobretudo, a sua adaptação de Morte em Veneza (1973) são um marco fundamental numa genealogia escassa, à qual se devem juntar a produção que a English National Opera apresentou em 2005 de As Lágrimas Amargas de Petra von Kant, a partir da peça, e depois filme, de Fassbinder, e a encomenda, em 2011, de Two Boys, de Nico Muhly, sobre os acontecimentos que levaram à morte de um adolescente. Em Madrid, contudo, Brokeback Mountain é uma estreia já que, lembrava o El País, El secreto Enamorado, de Manuel Balboa a partir de um texto de Ana Rossetti sobre Oscar Wilde, e apresentado em 1992, fora ignorada.
Brokeback Mountain pode não ser visto por Mortier, Proulx e Wuorinen como uma obra que hasteia uma bandeira. Isso não significa que da sua criação não se esperasse a constituição da “referência operática para a comunidade gay”, como escreveu a revista gay Out. “Aplaudimos o conceito mas não o resultado, apreciamos o marco que é a transformação em ópera de uma icónica história de amor entre dois homens, mesmo que não se tenha traduzido numa experiência artística satisfatória”. Esperava-se mais, nove anos passados sobre o filme. “Esta versão operática podia finalmente abrir as comportas emocionais mas apresenta-se surpreendentemente contida.” É o jornal alemão Welt quem sublinha o que se comentava após a estreia: “Num contexto como este, o que poderia ter uma importância capital, permanece um exercício de dever”.
A musicalidade da palavra Foi Mortier quem, fazendo a defesa das suas escolhas, chamou a atenção para o risco de comparação entre filme e ópera. “São objectos muito diferentes” e não foi por acaso que a programou num diálogo com Tristão e Isolda, de Wagner (que Peter Sellars encena com cenários em vídeo de Bill Viola). “A diferença é que em Wagner tudo é muito explícito e Annie Proulx escreve frases curtas”, explicou, procurando justificar o modo como a estreia da contista americana abria novas perspectivas para a sua história. “Tornei-me mais consciente da musicalidade da minha própria escrita”, disse a autora ao PÚBLICO, falando de um trabalho de “abertura da dimensão poética da própria palavra”. “No Wyoming todas as frases são curtas, há muitas palavras que são difíceis e o trabalho consistiu em perceber como podiam ser cantadas, mesmo sendo curtas, difíceis ou indizíveis”.
O que a autora percebeu, nesta nova leitura do conto, foi a musicalidade da sua palavra. “Nos contos tudo pode acontecer, é um modo muito condensado de contar uma história que deixa mais por intuir do que aquilo que afirma”. A distância da autora relativamente ao filme começa aí. “Há coisas que não precisamos de saber porque há coisas que não sabemos o que são”. No seu libreto as palavras deixam os cantores em suspensão e Ivo van Hove, usando isso a seu favor, constrói todo o seu olhar no conflito visual entre a exacerbação dos sentimentos e a desolação do cenário, entre a consciência emocional do corpo e a consciência racional das palavras. Para o compositor esta abordagem à eminente tragédia é a força que estruturou o seu trabalho, respondendo à inarticulação inicial de Ennis del Mar (“à sua manifesta homofobia e conservadorismo”, descreve Proulx) e à consciência clara de Jack Twist sobre o que procura.
Para quem tiver lido o conto e visto o filme, a surpresa da adaptação surge não apenas na criação de mais espaço dramatúrgico para o percurso de Alma, mulher de Ennis, mas também pelo modo como Proulx se aproveita das “tradições da ópera” e introduz um fantasma na narrativa (o sogro de Jack Twist que levanta suspeitas sobre as verdadeiras razões da morte, acidente ou homofobia: “não precisamos saber”) e um coro que age como corpo moralizante e vigilante.
Mas, escreveria o Financial Times, “um autor superlativo não é automaticamente um libretista consumado” e “as palavras que eram apenas intuídas no conto original [eram] demasiadas palavras; menos teria sido melhor”. Opinião que contrasta com a dos espanhóis. No El País, mesmo se “o libreto é transparente e às vezes demasiado previsível” é precisamente porque “o tratamento teatral e lírico é mais racional, mais controlado, mais narrativo ao pé da letra”. E isso deve-se ao facto de a história apresentar “personagens normais, das que se podem encontrar nas ruas”, tal como, sublinha o crítico, Puccini fizera com La Traviata. “E sabemos o que disse a História sobre a recepção da La Traviata”, brincou Mortier fazendo alusão às reacções negativas do público do La Fenice em 1853. “Já estive nervoso demasiadas vezes para me importar com o que se possa passar”, disse o ex-director, ironizando com a sua doença (foi-lhe diagnosticado um cancro que o levou a abandonar o cargo): “Tornei-me um existencialista e preocupo-me menos”. Por isso, menos preocupado com o impacto local que a ópera pudesse ter e mais interessado no papel que um teatro de ópera deve ter, sobretudo numa “cidade aberta e liberal mas com elites dominantes conservadoras”.
As reservas mais explicitadas pela imprensa vão para a partitura abrupta de Charles Wuorinen que toma conta do palco num diálogo contrastante com as projecções “das verdadeiras paisagens do Wyoming, onde se pode morrer” (assim descreveu Mortier) que o encenador Ivo van Hove usa em fundo – num palco onde os adereços foram inspirados na cenas do quotidiano pintado por Edward Hopper. Este contraste entre diferentes harmonias – a do texto na sua intencionada releitura dos silêncios surdos criado pelas diferentes posições dos amantes; a da música na sua partitura “atonal, complexa, desprovida de emoções” (El Mundo); a da encenação, apostando num “sentido teatral preciso e rítmico” (El País) – explicará a dificuldade em avaliar se a resposta crítica é equivalente à expectativa mediática.
Wuorinen havia explicado que o seu método de trabalho se podia definir como “uma prosódia natural” ou seja, um exercício que se deixa conduzir pelas palavras. “Ainda que o faça admiravelmente”, escreveu o New York Times, “esta é uma ópera que dificilmente se ama”. No jornal, Anthony Tommasini escreveu que as qualidades do trabalho de Wuorinen, como “a engenhosa complexidade, as lúcidas texturas e a atonalidade ácida da sua escrita harmónica”, são aqui os pontos fracos porque “anulam o drama”. Escreveu oGuardian que a partitura “seca e estiolada” de Wuorinen lembrava “por vezes um Schoenberg tardio e, noutras, um Stravinsky de série que raramente transcende o texto de modo a explorar o drama, optando por pontuações lacónicas que o sublinham”. Para o jornal inglês isso é perceptível desde “a tenebrosa abertura” que, mesmo antecipando a tragédia, “quando é chegado o momento trágico, com a morte de Jack, duas horas depois, nada mais há para mostrar a violência que se esperava; o monólogo final de Ennis é apenas indicativo do potencial que a música poderia ter explorado”.
Ennis del Mar caminha de uma inarticulação das palavras, por não saber expressar ou compreender os seus sentimentos, até uma explosão emocional que é tardia, pois apenas surge após a morte de Jack. A tensão sugerida ao longo da ópera é alimentada pelo conhecimento prévio do espectador sobre o desfecho e a admissão de erro por Ennis, que ali promete nunca mais amar ou deixar-se amar. Gerard Mortier falava de Brokeback Mountain como exemplo de reflexão da “nossa relação com a vida através da arte”. Talvez seja possível admitir que, quando a camisa ensanguentada de Jack é içada e desaparece nas brumas que envolvem o palco, Ennis se dê conta de que passaram vinte anos desde a luta entre os dois, na manhã após a noite que passaram juntos. No momento em que se despede de Jack, o palco abandona o branco clínico pelo negro soturno e é possível ler nas intenções de Ivo Van Hove, Annie Proulx e Charles Wuorinen um questionamento sobre as nossas próprias escolhas. Mortier defendeu Brokeback Mountain como uma inscrição nas verdadeiras emoções operáticas: “Podia ser uma ópera de Puccini, mas é muito perigoso admiti-lo. Não é de sentimento [que se fala], é tragédia”.
Nimer, um estudante palestiniano, sonha com uma vida melhor no estrangeiro. Uma noite conhece Roy, um advogado Israelita, e apaixonam-se. À medida que a sua relação se aprofunda, Nimer é confrontado com a dura realidade de uma sociedade Palestiniana que se recusa a aceitá-lo pela sua identidade sexual e a sociedade Israelita que o rejeita pela sua nacionalidade. Quando o seu amigo próximo é apanhado ilegalmente em Tel Aviv e enviado de volta para a Cisjordânia, onde é brutalmente assassinado, Nimer tem que escolher entre a vida que julgava querer e o seu amor por Roy.
Um pequeno erro no começo torna-se muito maior ao final: rumos da discussão eclesial sobre a questão gay
Texto do James Alison para o XXXVII Congresso de Teologia Moral, São Paulo 2-5 de Setembro de 2013. Uma versão deste texto, com aparato científico, está incluido no livro que reune os textos do XXXVII Congresso de Teologia Moral e que sairá em setembro 2013: Zacharias e Pessini (Eds.). ÉTICA TEOLÓGICA E JUVENTUDES: interpelações recíprocas - diversidade sexual – drogas – violência – redes sociais virtuais. Aparecida: Santuário 2013. [1]
i. introdução
Minhas irmãs, meus irmãos, agradeço enormemente o convite para participar deste congresso, e fico muito comovido por vocês terem me oferecido o uso da palavra no mesmo. Fico particularmente honrado com o convite já que vocês são teólogos moralistas com especialidades e áreas de perícia muito específicas. A minha formação, por contraste, é de teólogo sistemático. Tenho-me dedicado nos últimos anos à elaboração de um novo paradigma para a evangelização, tendo criado um curso de introdução à fé cristã para adultos. Meu envolvimento, então, com a matéria sobre a qual vocês pedem a minha intervenção tem sido eclesial, espiritual e pessoal: uma questão que incide na vivência de um cristianismo básico no mundo de hoje antes do que uma discussão moral. Necessariamente, então, a minha abordagem do assunto vai faltar muito em termos da finura da vossa disciplina, e por isso peço desculpas de antemão.
Proponho deixar de lado aquela nuvem de sentido, e de disfarce de sentido, que vem com a frase “diversidade sexual” por considerar que abrange demasiados temas para que seja útil num tempo limitado como este – temas onde tanto as realidades biológicas, químicas e neurológicas, quanto as possíveis consequências espirituais e morais delas decorrentes são suficientemente diferentes para que seja realmente uma curiosidade querer falar delas como se de uma categoria única se tratasse.
Em vez disso, vou me limitar muito mais a um assunto relativamente fácil de circunscrever: à parte LG da sigla LGBTQQ, ou à parte GL da sigla GLS. Ou seja, aquelas pessoas, homens e mulheres, que se sentem principalmente atraídos por pessoas do mesmo sexo. E vou falar disto sendo eu mesmo uma de tais pessoas. Se há uma primeira interpelação eclesial aqui, seria que, a meu ver, o uso correto da primeira pessoa, singular e plural, é muito importante. Uma das coisas que passa por apenas uma mentirinha nos meios eclesiásticos, mas que esconde na verdade algo muito mais grave é o uso de “eles” ou “vocês” em ocasiões quando “eu” ou “nós” seria mais certeiro. Pessoalmente creio que se não sou capaz de honestidade num assunto relativamente pouco importante, como este, então, por quê vou merecer credibilidade quando falo sobre coisas bem mais importantes, como o amor de Deus, a ressurreição dos mortos, ou a presença de Jesus nos sacramentos?
Gostaria, então, de desenvolver para vocês uma meditação sobre três dimensões daquilo que é, na minha opinião, a principal interpelação que faz a questão gay à vida eclesial, antes de terminar numa breve reflexão sobre o assunto “juventudes”. As três dimensões da mesma interpelação são estas: verdade, veracidade e honestidade. Na vida real, evidentemente, as três dimensões vêm juntas. As distingo com a intenção de facilitar uma discussão mais estruturada.
ii. a questão da verdade
Primeiro, o assunto da verdade. No fundo, há uma só questão a ser abordada entre as pessoas gays e a vida da Igreja, e é uma questão simples. Será que existem mesmo pessoas gays? Ou é mais verdadeiro dizer que no universo dos humanos, todos os quais são intrinsecamente heterossexuais, existem alguns que sofrem de uma desordem objetiva que poderia ser chamada de “inclinação homossexual”, ou num falar um pouco mais moderno, “atração pelo mesmo sexo”? Dito de outro modo: será que ser gay se trata de uma variante minoritária não patológica que ocorre regularmente dentro da condição humana, ou será antes que se trata de uma desordem objetiva? Se for o primeiro, uma analogia poderia ser o ser canhoto, onde os atos típicos decorrentes da variante minoritária seriam bons ou ruins conforme as circunstâncias. Se for o segundo, então uma analogia talvez possa ser a anorexia. Todos entenderíamos a anorexia como sendo uma desordem objetiva, uma patologia do desejo cujos comportamentos típicos, se não forem corrigidos, controlados e superados, levam à autodestruição da pessoa.
Bom, sobre este assunto, como vocês sabem muito bem, existe uma clara manifestação das Congregações Romanas, um ensinamento de terceira ordem na hierarquia das verdades, mas que se impõe em toda discussão oficial sobre o assunto. Este ensinamento, que foi acunhado em 1986, reza assim: “é necessário precisar que a particular inclinação da pessoa homossexual, embora não seja em si mesma um pecado, constitui, no entanto, uma tendência, mais ou menos acentuada, para um comportamento intrinsecamente mau do ponto de vista moral. Por este motivo, a própria inclinação deve ser considerada como objetivamente desordenada”. Ou seja, o ensino comum das Congregações Romanas é clara: “a inclinação homossexual ... deve ser considerada objetivamente desordenada”.
Pessoalmente, e contrariamente àquilo que poderia se supor, agradeço esta lucidez do autor, ou autores, da “Homosexualitatis problema”[2], porque nos permite avançar claramente na questão da verdade. Ele, ou eles, vinculam indissoluvelmente a intrínseca ruindade dos atos a uma desordem objetiva. E nisso, são pessoas muito mais finas do que aqueles lobos em pele de ovelha que tem abundado no nosso meio nos anos recentes. Tais lobos querem dizer algo assim: “Nós amamos todos os seres humanos, todos são filhos e filhas de Deus. Não temos nada contra as pessoas gays em si, só dizemos que devem se abster dos atos homossexuais. O nosso ensino é sobre os atos, e não sobre o ser”. Bom, a pele de ovelha está em “nós amamos todos” e os dentes do lobo se escondem sob “é só se abster para sempre dos atos”, como se fosse possível que os atos pudessem ser desligados da inclinação de uma maneira simples. Graças a Deus, as Congregações Romanas, neste ensinamento, são mais honestas, sendo ou todo ovelha, ou todo lobo, mas nada de híbrido disfarçado. Porque as Congregações Romanas sabem muito bem que é um absurdo moral, espiritual e de doutrina católica imaginar que a partir de uma condição neutra ou positiva, podem fluir atos típicos que seriam intrinsecamente ruins. Se aquilo que chamam de “inclinação homossexual” for uma coisa neutra ou positiva, os atos daí decorrentes não poderiam ser intrinsecamente ruins, mas bons ou ruins segundo o uso. As Congregações Romanas são claras: se queremos chamar os atos de intrinsecamente maus, não há como evitar categorizar a condição em si como uma desordem objetiva.
Esta lucidez deles nos leva, agradecidos, àquela questão de fundo que falei para vocês. Será que é verdade que ser gay é uma desordem objetiva? Ou será que é antes verdade que é uma variante minoritária e não patológica que ocorre regularmente dentro da condição humana? E gostaria de agradecer mais uma vez o(s) autor(es) da Homosexualitatis problema porque ele(s) indica(m) os termos de referência desta questão da verdade ao utilizar a palavra “objetivo”. Indicam, muito claramente, que aqui não estamos diante de uma questão de perspectiva pós-moderna, ou de “achismo”, não podemos fugir da questão por meio do relativismo, alegando questões de consciência, ou do direito humano ou civil de manter uma opinião subjetiva errada. Estamos diante de algo que é ou não é.
Ou ser gay é uma desordem objetiva, ou não é. No caso afirmativo, todos os avanços científicos no mundo da genética, dos neurônios, da química cerebral, da endocrinologia, dos hormônios intrauterinos, da psicologia infantil e assim por diante, tenderão a demonstrar o fato. E todas as evidências de vida testemunhadas pelas pessoas afetadas vão ser sinais da sua verdade: que as pessoas que são gay só levam uma vida sadia, só tendem a florescer, na medida em que tratam esta característica delas como sendo algum tipo de defeito a ser controlado ou superado. Por outro lado, pela evidencia da vida das pessoas que tratam esta sua característica como uma coisa normal, e se empenham em procurar um florescimento por meio de desenvolver esta característica como se fosse uma simples variante minoritária e não patológica, vai ficar cada vez mais público e notório que estas pessoas não são capazes de um florescimento humano e que a suposta autoaceitação delas não é na verdade senão uma forma de autodestruição. Nem todo o autoengano deste mundo vai conseguir abafar a verdade objetiva: pois lentamente, e apesar das formidáveis barreiras que a nossa cultura humana, fruto da queda de Adão, costuma levantar contra a verdade, aquilo que é termina se impondo, se nos faz presente e resplandece em nosso meio, porque o Criador de todas as coisas está por detrás dele.
E, é claro, as consequências decorrem com exatamente o mesmo rigor no sentido contrário se a verdade não for aquela da desordem objetiva, mas da variante minoritária não patológica. Apesar das formidáveis barreiras levantadas contra a verdade pela nossa cultura humana, fruto da queda de Adão, que neste caso incluiriam barreiras idolátricas levantadas por autoridades religiosas, aquilo que é termina se impondo, se nos faz presente e resplandece em nosso meio, porque o Criador de todas as coisas está por detrás dele. Todos os avanços nos diversos campos científicos acima citados tenderão a mostrar que se trata de uma variante minoritária, não patológica, na condição humana, e que ocorre regularmente. E todas as evidências da vida das pessoas também tornarão público e notório que quem aceitar esta característica dele como algo normal vai florescer na medida desta aceitação de que seu crescimento passa pelo desenvolvimento normal deste elemento da vida. E por outro lado, quem vive no engano, ou autoengano, de imaginar que o seu florescimento só pode se dar apesar desta característica e não com a contribuição da mesma, que deve ser então escondida, abafada, ou até “curada”, esta pessoa se diminui e colabora para a sua autodestruição.
Estamos falando então de uma questão de verdade objetiva. E uma das coisas boas da verdade objetiva é que não depende de nós. Não depende de quem seja melhor no debate, ou mais poderoso, ou mais rico, ou sequer mais inteligente, nem muito menos de qualquer autoridade religiosa. Simplesmente é. Se ser gay é uma desordem objetiva, então todos os supostos lobbies gays no mundo não vão fazer uma mínima diferença em alterar esta realidade, por mais estragos que possam causar antes de reconhecê-lo. E por outro lado, se for o caso que ser gay é uma variante minoritária não patológica dentro da condição humana, então nem os cientistas do exército americano, ou soviético, dos anos 1950, nem os propulsores da chamada terapia reparativa em suas várias versões, os doutores Nicolosi, Van Aardweg, Polaino e Anatrella, nem os exorcismos dos pastores Malafaia ou Feliciano, por exemplo, vão fazer a mínima diferença em alterar a realidade, por mais estragos que possam causar antes de reconhecê-lo. Como seus antecessores aprenderam no caso Galileu, nem o Papa tem o poder de alterar uma realidade objetiva deste tipo. E não é amigo verdadeiro do Papa aquele cuja bajulação leva o mesmo a ter pretensões de uma autoridade além do seu alcance.
iii. do ponto de partida, todo o resto flui
Desculpe a lentidão em chegar a este ponto, mas quis sinalizar uma coisa que é, em certo sentido, óbvia. Dependendo de qual destas posições seja verdadeira, todo o resto flui. Donde decorre que não vale a pena sequer começar a discutir os detalhes menores daquilo que segue – quais direitos humanos seriam aplicáveis, se deve ser lícito o casamento ente pessoas do mesmo sexo, ou antes a punição, talvez drástica como em certos países islâmicos, de qualquer ato que delate a existência desta inclinação na vida de uma pessoa, – não vale a pena discutir estas questões até cumprirmos a tarefa de nos colocar diante da verdadeira caracterização da pessoa em questão. Santo Tomás nos oferece uma bela frase para descrever as graves consequências de não ter acertado o primeiro passo: Error parvus in principio, magnus est in fine. Mesmo que um erro seja só aparentemente pequeno no começo, se não for corrigido, termina levando o caminhante muito longe mesmo do caminho certo. Aqui poderíamos dizer que a diferença entre a analogia do canhoto e a analogia do anoréxico não é, aparentemente, muito grande. Porém, as consequências para a vida da Igreja, das famílias e das pessoas, de partir da falsa e não da verdadeira analogia, vão muito longe mesmo.
Bom, como vocês sabem, a esta altura do jogo, na segunda década do século 21, a evidência da razão está se mostrando contundentemente pelo lado de uma destas duas caracterizações: não há evidência alguma de tipo genético, neurobiológico, químico, endocrinológico, hormonal, nem de psicologia infantil ou adulta para indicar que ser gay é uma desordem objetiva. Ao contrário, toda a evidência atualmente disponível, e ainda estamos nos primórdios de muitos campos novos de estudo, leva a pensar que não há patologia alguma que seja intrínseca ao ser gay, mas que as pessoas gays têm as mesmas tendências à saúde e à patologia que as pessoas heterossexuais. Ou seja, que ser gay é mesmo uma variante minoritária e não patológica que ocorre regularmente dentro da condição humana. Não somos nem mais nem menos “fodidos” só pelo assunto da orientação sexual; antes, em termos de “fodidez”, somos bem iguais. E estas evidências de tipo científico estão recebendo uma confirmação de tipo popular cada vez mais forte a cada dia, na medida em que, por todo o planeta, a começar pelos países de ocidente, as pessoas gays vão perdendo o medo de viver de maneira transparente, e por isso a gama das nossas características, em toda a sua variedade, chega a ser cada vez mais visível. Com a visibilidade some o mistério, e percebe-se que não somos nem mais nem menos generosos, irresponsáveis, ignorantes, ciumentos, paranoicos, inteligentes, honestos, preguiçosos, violentos ou confiáveis que os outros. Antes, somos banalmente muito parecidos.
Vale a pena insistir nisto ante este público já que alguns de vocês dependem para o vosso sustento de um meio eclesiástico onde ainda há um abismo entre a primeira categoria de evidência, aquilo que se conhece formalmente de tipo científico, e a segunda categoria de evidência, a sua confirmação cotidiana em meio ao povo pelo conhecimento de parentes e amigos que vivem isto de maneira transparente e sem distúrbios. No meio eclesiástico, não dá para perceber tal vivência transparente e sem distúrbios. De fato, qualquer pessoa hétero morando num seminário, ou comunidade religiosa, e que não tinha antes muito conhecimento de pessoas gays talvez vá se dando conta que tem uma desproporção muito grande de pessoas gays no meio religioso, porém nenhuma delas consegue ser plenamente honesta nem com os outros, nem consigo mesma. Antes paira uma nuvem de chantagem e de esconde-esconde sobre toda a convivência. Não seria de se surpreender que tal pessoa hétero chegasse a deduzir, a partir da evidência que tem diante do nariz, que existe um elo intrínseco entre a homossexualidade e a desonestidade. Para que tal pessoa chegue a suspeitar que talvez a desonestidade que tem razão em detectar ao seu redor seja uma dimensão estruturante da vivência eclesiástica atual, que impõe como premissa uma caracterização falsa da psique de boa parte dos seus integrantes clericais, e não um elemento intrínseco às pessoas gays, será ainda necessário caminhar muito.
iv. recusa do binômio “verdade objetiva e honestidade”
Bom, parece que deslizei da questão da verdade para a da honestidade. Mas curiosamente, não é o que quero fazer. De fato, é demasiado fácil saltar do elemento “verdade objetiva” para o elemento “honestidade” como se o mundo e a nossa vivência real fossem divididos entre verdades conhecidas objetivamente, por um lado, e por subjetividades mais o menos desonestas, por outro. E que por algum mandamento moral, ou força de vontade, teriam de se adequar estas subjetividades à verdade objetiva. A meu ver, uma grande parte da dificuldade que a Igreja tem para lidar com esta questão é justamente neste ponto: fora alguns redutos rigoristas, mais ou menos todo mundo minimamente informado sabe que aquela premissa básica que é a caracterização da desordem objetiva é falsa. E mais ou menos todo o mundo quer ser honesto. Por outro lado, todo mundo sabe que reconhecer a falsidade da premissa equivale a dizer que a Igreja está ensinando um erro. E mesmo que seja só um erro antropológico, e não sobre uma questão de revelação divina, dá muito medo no nosso meio assumir esta posição. Em simples termos de colocar em risco o emprego: a gente deixa de ser gente se não se é “confiável” em manter a fachada sobretudo nesta questão, que tem tão íntimas consequências na vivência eclesiástica, especialmente a masculina. Juntam-se a isto as consequências deste reconhecimento, mesmo no nível intelectual. Se retirar este naipe da desordem objetiva das pessoas gays do castelo de cartas da antropologia sexual católica oficial, então deixa de ser possível manter que todos os atos entre pessoas do mesmo sexo seriam intrinsecamente ruins. E basta que um ato sexual entre pessoas do mesmo sexo não seja ruim, no qual por razões evidentes a função unitiva está sem ligação com qualquer função procriativa, e o castelo de cartas desaba. Deixa de ser possível insistir que é somente bom o ato heterossexual onde as funções unitiva e procriativa não são deliberadamente separadas. Pois, seria um absurdo manter um maior rigor para as pessoas heterossexuais do que para os gays.
Porém, não quero saltar do assunto da verdade objetiva para o assunto da honestidade subjetiva das pessoas individuais na Igreja. Mesmo que seja este binômio, entre verdade e desonestidade, ou entre verdade de fachada e vida dupla, que nos faz, como católicos, tão suscetíveis à acusação de hipocrisia. De fato, qualquer acusador nosso, seja do lado secularizante – por exemplo, um ativista gay que vê na Igreja só um inimigo da felicidade –, seja do lado sacralizante – no caso de um paladino da tradição que vê nos gays só inimigos da fé e dos valores familiares se assemelham no seguinte: os dois lados têm em nós um alvo demasiado fácil. Nos pegam de mãos atadas. Os dois lados estão com raiva do estado atual das coisas na Igreja, e com justa razão. Entendendo as coisas por um lado, a Igreja deve simplesmente reconhecer a verdade científica, e os seus integrantes simplesmente deveriam aprender a ser honestos. E entendendo as mesmas coisas pelo outro lado, todos os integrantes eclesiásticos devem reconhecer honestamente a verdade do atual ensinamento, e os que são gay deveriam reconhecer a sua inadequação para o ministério e se retirar, ou não se propor para qualquer ministério público na Igreja.
v. o “skandalon”
Nos termos de Bateson é um “double bind” perfeito: se falar a verdade, você fica de fora (do grupo); e se não falar a verdade, fica de fora (do sentido para o qual existe o grupo). Então muitos integrantes da Igreja preferem ficar num espaço ambíguo, uma espécie de “Don’t ask, Don’t tell” onde tudo é cinzento. Mesmo sem falar da miséria psíquica que este ambiente produz, nem dos relacionamentos disfuncionais e inapropriados que nele abundam, isto é evidentemente o ambiente mais propício para toda classe de chantagem.
Bom, aquilo que Bateson teria chamado de “double bind”, o meu guru, o René Girard, chama pelo nome mais clássico em termos teológicos de “skandalon”[3]. E é mesmo. A vivência eclesial desta questão merece mesmo o nome de escândalo, não no sentido jornalístico, mas no sentido estrito, de um mecanismo que é pedra de tropeço, algo que atrai e repele a seus integrantes ao mesmo tempo, atando-nos em ritmos de desejo insuportáveis de viver com e insuportáveis de viver sem. É um escândalo vivido na carne própria pelos de dentro, e tende a se reproduzir como escândalo nos inocentes que são induzidos a formar parte deste mundo escandalizado. Este processo de ficar atado num “skandalon” leva à paralisia do coração, passo muito próximo à perda da alma. Mas é aqui onde me parece que vem em jogo aquele terceiro elemento da interpelação que mencionei ao começo, a da veracidade.
Aqui, a meu ver, é a área mais frutífera para a interpelação entre pessoas gays e a vivência eclesial. Pois se estamos diante de um“skandalon” no sentido de Girard, que creio ser o do Evangelho, procurar, então, esticar as pessoas escandalizadas entre a “verdade” e a “honestidade” é mais uma maneira de nos deixarmos cozinhar pelo inexorável fogo baixo da acusação. Ora, a qualidade da acusação é que só atiça e estreita os nós do escândalo, mas não oferece nenhuma saída dos seus laços.
Por isto, gostaria de oferecer para vocês algumas observações sobre a dimensão da veracidade neste campo. A minha tarefa, como cristão, como padre, e como teólogo, não é atiçar os laços do escândalo, mas reconhecendo sem fingimento o skandalon por aquilo que é, procurar desatar aqueles nós, oferecendo caminhos pelos quais seja possível sair de tanta dor e autodestruição.
vi. a veracidade
Quando falo veracidade, então, falo do processo pelo qual o grupo humano e os seus integrantes chegam a adquirir uma disposição estável de se deixar ajustar àquilo que realmente é, e poder falar a respeito. Por exemplo, durante os últimos séculos temos crescido muito no conhecimento da meteorologia. Temos chegado, como sociedade, e com pouquíssimas exceções, a compreender sem sequer pensar muito no assunto, que as forças do vento, do mar, da chuva, as temperaturas altas e baixas, a produção de furacões, etc. seguem certos ritmos e leis da física, e que são interdependentes. Temos nos ajustado a esta maneira de entender as coisas, e de dar certo crédito aos meteorólogos, suas predições e explicações. Se um membro de uma comunidade recentemente afetada por uma tempestade nos propusesse que aquele evento é o resultado de uma bruxaria, e que a pessoa que lançou o feitiço deveria ser achada e punida pelos estragos causados, duvidaríamos primeiro da inteligência do nosso informante e, caso o mesmo se revelasse inteligente, e ainda insistente, duvidaríamos da saúde mental ou da honestidade das intenções dele. Teria se mostrado uma pessoa com um defeito sério na veracidade, na capacidade para ser esticada por aquilo que é. Em contrapartida, muitos de nós recitamos sem escândalo o salmo 147 que diz de Deus: “Ele atira seu gelo em migalhas”. Mas consideraríamos muito estranho que alguém propusesse que a explicação real das chuvas de granizo é mesmo uma confusão divina entre gelo e pão. Sabemos muito bem distinguir entre as causas secundárias, em termos de Santo Tomás, e a primeira causa, e também sabemos que aquelas não estão em rivalidade com esta.
Ou seja, conseguimos distinguir entre acontecimentos meteorológicos por um lado e projeções sobre a divindade ou alterações sociais produzidas pela inveja e rivalidade dos membros de uma comunidade, por outro. E fazemos esta distinção sem escândalo. Este processo de ajuste dos seres humanos à realidade não foi imediato; de fato, demorou séculos, mas uma vez feito, resultou ser estável.
Proponho para vocês que é precisamente a um processo de veracidade deste tipo ao qual somos chamados como Igreja pela questão gay. E gostaria de sublinhar que sair de um escândalo não é um processo puramente intelectual. De fato, funciona muito mais ao nível do desejo que nos estrutura do que naquele nível relativamente secundário que é o do raciocínio. Dou-lhes um exemplo. Recentemente um Bispo amigo meu foi chamado pelo Vaticano para responder por uma pastoral gay na diocese dele. Os acusadores tinham outros motivos para incomodar o Bispo, mas acusar um bispo de demasiado liberal no assunto gay é sempre uma boa arma no campo minado do amor cristão. O Bispo me consultou a respeito, e eu disse para ele aquilo que digo para vocês: que, havendo seguido os estudos durante anos, a meu ver, trata-se de uma variante minoritária não patológica e que ocorre regularmente na condição humana, com as consequências normais que disto decorrem. O Bispo, muito inteligentemente, e não querendo depender numa questão de evidência científica da opinião de um mero teólogo que é também um homem pessoalmente envolvido no assunto, procurou os principais médicos, psicólogos e cientistas da diocese dele, um por um, e perguntou qual era o parecer deles na matéria. E todos, sem exceção, disseram para ele a mesma coisa. Então, durante a entrevista dele no Vaticano, ele levantou esta questão, sugerindo que estamos diante de um fato já aceito pacificamente no universo científico. Os seus interlocutores romanos informaram ele que não era para ele ser enganado deste jeito, e que a pretendida cientificidade deste fato é simplesmente o resultado de um lobby gay muito poderoso e influente.
Agora, espero que vocês vejam a diferença entre as duas maneiras de proceder. Por um lado tem alguém que está disposto a perder a reputação dele no grupo que o sustenta, ao reconhecer a possibilidade, mas não a certeza, de que a realidade talvez seja diferente do que pensava. Por isto ele se dá o trabalho de estudar o assunto, confiante de que, seja qual for o resultado da pesquisa, a verdade é aquilo que nos faz bem, e que é muito exatamente uma parte do exercício do dom da Fé confiar em que Deus nos mostrará aquilo que é realmente bom para nós se estivermos dispostos a correr o risco de nos percebermos errados. Ou seja, por um lado alguém se encontrou com suficiente liberdade no meio do grupo dele como para se permitir o exercício da virtude da studiositas como parte do caminho para se ajustar à verdade das coisas.
Por outro lado, temos uma pessoa ou grupo de pessoas de tal modo escandalizadas pela possibilidade de que a verdade objetiva não esteja conforme aquilo que deve ser, segundo o entendimento deles do ensino da Igreja, que resolvem o problema por meio de uma teoria de conspiração. “Só os médicos e psicólogos que estão de acordo conosco são aceitáveis. Se existem muitas pessoas alegando que estamos diante de uma verdade de tipo científico discordante do nosso ensinamento, mas que agora é pacificamente aceita pela imensa maioria dos estudiosos, então a explicação é que um poderoso grupo de malfeitores teria adulterado a ciência a favor do autoengano deles.” Espero que dê para perceber que uma teoria da conspiração deste tipo é o equivalente intelectual da premissa da bruxaria causadora da tempestade, e é um empecilho perfeito à possibilidade da veracidade. Quem se aferra a uma causalidade social acusadora desta maneira nunca vai ter acesso à possibilidade do conhecimento científico, nem da meteorologia, nem das ciências modernas que estão nos permitindo entender a orientação sexual. Ou seja, o pensamento escandalizado é justamente o oposto do caminho da veracidade. Nos mantém longe da possibilidade de nos ajustar àquilo que realmente é e menos ainda de poder falar a partir de dentro daquele processo de ajuste.
vii. passos para sair do “skandalon”
Graças a Deus, os nós do “skandalon” são desatáveis. Se os mecanismos do constante atiçamento dos nós do skandalon são potenciados pela acusação, aquilo que potencia o soltar os laços é o perdão. E de fato, no epicentro da fé cristã e católica entendemos muito bem que a chave para abrir a verdade que nos libera é o Espirito d’Aquele que estava disposto não a fugir do skandalon mas Ele mesmo entrar no lugar do skandalon, sendo definido Ele mesmo como escandaloso, e suportando o peso da violência, das falsas acusações, da vergonha, da desfiguração e da morte. E o fez tudo para que nós pudéssemos passar pelo espaço dos escândalos sem ficar escandalizados: “Feliz aquele que não se escandalizar em mim”.
E é isso mesmo: na medida em que achamos que nesta situação de vivência eclesial, não há nada para ser perdoado, é só insistir nas definições de sempre com maior rigor frente a um mundo perverso cada vez menos disposto a nos ouvir. Deste modo, só conseguimos atiçar o skandalon até o ponto onde a nossa perda de razão fica evidente para todo mundo menos para nós. Assim ficamos ainda mais escandalizados ao percebermos como os outros consideram tabu irracional aquilo que chega a ser para nós pedra de toque da nossa sacralidade. Por outro lado, na medida em que reconhecemos que tem algo para ser perdoado, quer dizer solto, permitido a fluir, e que somente na medida em que nos deixamos perdoar é que vamos perceber a realidade daquilo que é, assim veremos o skandalon se esfumar e vamos ficar livres.
Repito isto, porque é um dos segredos do cristianismo que a Igreja muitas vezes consegue esconder de si própria. O principio da realidade flui a partir da vítima que nos perdoa, e que nos dá o poder de segui-la sendo perdoados e espalhando o perdão, fazendo dos lugares escuros e aparentemente tóxicos da vergonha e do escândalo, lugares onde podemos morar pacificamente, e por isso, começar a detectar e descrever sem medo aquilo que realmente está acontecendo. Aquele que diz “Eu sou a verdade, o caminho e a vida, ninguém vem ao Pai a não ser por mim” soprou nos apóstolos o Espirito Criador mandando-os perdoar, e é aquele Espírito que nos leva a toda a verdade, e nos assegura que a verdade nos libertará.
Ou seja, o primeiro passo para sair do skandalon que é a atual vivência eclesial do assunto gay é se deixar perdoar. E o segundo passo, que flui automaticamente do primeiro é na medida em que começamos a nos descobrirmos perdoados, e por isso capazes de caminhar com maior leveza de espírito em meios perigosos, onde só o perdão nos dará a capacidade de não nos preocuparmos pela perda de reputação e assim por diante, a perdoar aqueles que ainda ficam escandalizados e por isso são pessoas violentas, ainda filhos da ira, que não entendem bem as forças cruéis do desejo escandalizado que as agitam. Os escandalizados não serão capazes de deixar de mentir, de atacar, de acusar, se pensando justos ao fazê-lo, e agindo até com maior ferocidade na medida em que perceberem a liberdade e a tranquilidade alheia. Com o escandalizado, nunca entrar em debate. Ao escandalizado se perdoa sem que ele o peça, pois não sabe o que faz, e porque, não o perdoando, ficamos com o risco de sermos contagiados pelo mesmo escândalo.
O terceiro passo, e é um grande privilégio da fé católica, é poder ver com aquela racionalidade tranquila de quem passou pela perda de tudo, e ainda se descobriu mantido em vida, como é que esta pequena abertura para uma antropologia mais verdadeira não é, como se poderia pensar, uma ruptura da fé, ou uma brecha na bela totalidade da vivência católica, mas, ao contrário: é o seu desenvolvimento, a partir de dentro, mais orgânico. É uma daquelas coisas que do lado de fora parece um obstáculo, e por isso uma pedra a ser rejeitada, mas pelo lado de dentro, percebe-se o seu vínculo íntimo com a pedra angular. Ou seja, uma vez que a gente está além do escândalo, a gente olha para atrás e percebe que o pleno reconhecimento da humanidade das pessoas gays foi, e está sendo, o desenvolvimento mais íntegro da vivência cristã, seguindo muito exatamente aquilo que Jesus nos prometeu. Curiosamente, este desenvolvimento integralmente cristão tem sido liderado por pessoas que pouco sabiam o quanto eram cristãs a ousadia, a humildade e a perseverança delas, e tem sido obstruído por pessoas que pouco sabiam que a rigidez, o escândalo e a desonestidade delas nada de cristão tinham. Um fato assim deveria ser motivo de vergonha para nós que levamos o nome de cristão, porém só pode ser motivo de surpresa para quem não tiver dedicado o mínimo de tempo a ler os Evangelhos…
O quarto passo, descobrindo-nos, sem mérito nosso, por dentro da dinâmica orgânica do Evangelho é nos dar conta de que a fé católica sempre previa possibilidades deste tipo. O ensinamento católico com respeito a Fé e a Razão, a Graça e a Natureza, mantido nos conselhos de Trento, Vaticano I e II, e ensinado com particular lucidez pelo Bento XVI nos facilita muito a tarefa de sair dum escândalo que é muito mais forte para grupos que não tem este ensinamento. Pois, uma vez que é o ensinamento constante da Igreja que a razão humana, por débil que seja, não ficou totalmente danificada na queda, e por isso ainda é capaz de aprender a verdade, mesmo que por caminhos árduos e onde avançamos só em meio a muitos erros; e que a natureza humana, e junto com ela o desejo humano não é radicalmente depravado, mas em si uma coisa boa, mesmo que vivido por todos nós de uma forma distorcida e debilitada; uma vez lembradas estas coisas, então podemos entender que é absolutamente conforme à nossa fé o poder aprender, ao longo do tempo e de maneira árdua, que alguma coisa que parecia ser um defeito da natureza humana não o é e que aquilo que se pensava uma condição viciada ou patológica não o é. Devido justamente a esta compreensão, a fé católica entende que Deus, porque nos ama, não proíbe coisas de maneira caprichosa, só proíbe aquilo que nos faz mal. Quando se pensava que ser gay era um defeito numa natureza humana intrinsecamente heterossexual, então não se colocava em questão que a proibição fosse para o nosso bem. No momento em que se descobre que, antes, ser gay diz respeito a uma variante minoritária e não patológica na condição humana, então automaticamente fica claro que aquilo que se pensava ser uma proibição divina não é, e nunca foi, tal. É e foi um tabu humano, parte daquele mundo de ignorância e violência que ainda não tinha aprendido a respeitar a dignidade, a beleza, e a capacidade para o florescimento de diversos membros da raça humana. Mas que agora, e como parte integrante da Boa Nova, estamos descobrindo que ser humano é uma aventura maior e mais rica do que se pensava antes.
viii. a catolicidade do caminho proposto
Quero insistir nisto, porque significa que o descobrimento da condição não patológica do ser gay, um autêntico descobrimento de tipo antropológico, um autêntico ganho para a humanidade, não é um ataque frontal a uma doutrina da Igreja. Ao contrário, é parte de um mecanismo absolutamente normal, e interno à vida da Igreja, pelo qual chegamos a perceber um conflito entre duas doutrinas que antes não pareciam ter nenhum conflito entre elas: a doutrina acerca da fé, da razão, da natureza e da graça, por um lado, e a proibição absoluta de todo ato de amor entre pessoas do mesmo sexo, por outro. As duas doutrinas de fato têm um conflito, se aquilo que chegamos a perceber e apreciar ao seguir a primeira doutrina, que é, de toda evidência, central para a visão católica do mundo, nos leva muito obedientemente a relativizar e finalmente a rejeitar, como sendo expressão de um tabu, a segunda doutrina. A primeira doutrina nos teria ensinado que a segunda não pode ser de origem divina, sendo que é incompatível com a benevolência e a sabedoria do Criador ter querido frustrar por meio de uma proibição absoluta o desenvolvimento e crescimento normal de uma condição que ele mesmo teria se comprazido em introduzir na nossa experiência de filhas e filhos dele. A bondade ou ruindade dos atos de amor entre pessoas do mesmo sexo dependeria de seu uso, como é de fato a experiência das pessoas gays, e os critérios para isto deveriam ser aprendidos por nós, guiados por aquela inapagável tendência em nós para a verdade que a Igreja tanto preconiza e à qual tantas pessoas gays e lésbicas têm dado testemunho na face de tanta rejeição eclesiástica.
Acho que vale a pena lembrar disto: como o ensinamento da Igreja vem de Deus, quando descobrimos um erro, é evidente que aquilo não era, na verdade, o ensinamento da Igreja. E os que insistiam que era, resultaram ser os que foram na verdade pouco leais à Igreja, preferindo uma aparente continuidade tingida com erro a uma vivacidade sempre mais ricamente portadora da verdade [4].
ix. conclusão
E isto me leva ao ponto com o qual quero concluir. Estamos reunidos para falar sobre as recíprocas interpelações entre juventudes e teologia moral. Conforme lhes disse no começo, não sou formado em teologia moral, e o meu interesse principal é no cristianismo básico e a evangelização. Espero que tudo que disse até agora sirva para sublinhar a tarefa que temos em comum: até descobrirmos as maneiras, internas às nossas disciplinas, de entender que o processo de crescente veracidade em matéria de orientação sexual, que tem ocorrido muito mais fora da Igreja do que no seu meio, tem sido, e é, parte orgânica da Boa Nova que vem de Cristo, e não o inimigo daquela Boa Nova. Até que descubramos isto por nós mesmos, a única interpelação que teremos para as juventudes é querer trazê-las para dentro da nossa vivência escandalizada. Neste caso, seria muito apropriado que tivéssemos medo de que venham a cair sobre nós os “ai” de Mateus (23, 13-36) com todo seu peso. Enquanto, por outro lado, a principal interpelação das juventudes para nós, se é que sequer se preocupam em procurar o diálogo, vai ser “Onde estavam vocês quando tivemos de crescer sem apoio, sem modelos, sem exemplos, quando tivemos de passar pelo vale da sombra da morte? Ficamos a sós com o Senhor, como nosso único Pastor, muitas vezes sem que sequer o percebêssemos, já que vocês, que foram formados para nos ajudar, e tinham tudo para fazer brilhar o sinal eficaz do pastoreio d’Ele, tiveram medo do lobo e fugiram.”
São Paulo e Londres, Maio/Junho/Julho de 2013
Endnotes
[1] Agradeço ao meu amigo Lula Ramires por ter revisado a redação deste meu texto, escrito originalmente em português. back
Realizador: Chaim Elbaum Interpretes: Ori Lachmi, Omer Zonenshein, Yehonadav Perlman, Irzik Haikeh, Yariv Kook, Sigalit Ya'akobi País: Israel Ano: 2007 Duração: 28 Minutos Idioma: Hebreu Legendas: Espanhol, Inglês Sinopse: Um jovem israelita ortodoxo sofre uma profunda solidão e angústiaescondendo dos outros que é gay. O filme aborda a questão da homossexualidade na sociedade religiosa.
Timothy Radcliffe OP, ex-Mestre da Ordem Dominicana, fala sobre o tema do seu livro "'What is the Point of Being a Christian?" na Catedral de St Paul. Parte da série de eventos organizados pelo Fórum de São Paulo, intitulado "The Case for God '.
Esta conferência põe a descoberto uma visão fantástica do ser cristão, com algumas referências aos cristãos homossexuais como, por exemplo, a partir do minuto 48" em que diz, numa tradução livre, mais ou menos isto: "A coisa mais importante numa pessoa gay ou hetero, indecisa ou confusa é que ela tem a capacidade de amar o outro e que Deus está nesse amor. Deus está no amor de duas pessoas gays como está em qualquer tipo de amor e é por isso que acho que a Igreja colapsaria se não houvesse cristãos gays"
"As pessoas nos acham masoquistas. Não é isso. Somos católicos e gays. Uma é a expressão da espiritualidade. A outra, da sexualidade". Assim a psicóloga Cristiana Serra, de 39 anos, explica o porquê da criação, há sete anos, do Diversidade Católica. O grupo se prepara para receber jovens com o mesmo perfil, que virão de todo o mundo, para a Jornada Mundial da Juventude, em julho.
- Não é para fazer piquete ou pedir aceitação do Papa. Vamos conversar com jovens sobre como é ser gay dentro da Igreja - diz o professor Hugo Nogueira, de 42 anos, um dos organizadores do evento, que acontece na Unirio, no auditório Vera Janacopulos, 25 de julho, de 14h a 18h.
São pessoas com histórias parecidas com a do músico Pedro Borges, de 28 anos.
- Sempre fui católico, até que descobri minha sexualidade. Não foi tranquilo, mas tudo muda quando se vê que o padre não é um mágico, mas uma pessoa que deve orientar a fé - diz Pedro, que é voluntário da Jornada.
Não faltam relatos de jovens "feridos na alma" por um ambiente conservador.
- Um menino cortou os pulsos. Alguns documentos oficiais são de um assédio moral devastador. Como padre, vejo que a Igreja deve receber todos - diz um dos raros sacerdotes, que prefere não se identificar, a ouvir confissões de gays no Rio.
Os que fazem parte do grupo confessam seus pecados, não vêem a sexualidade como pecado, mas condição natural, e comungam.
- Hóstia não é medalha de comportamento. É símbolo da fé - defende Hugo.
O posicionamento não é consenso. Apesar de o arcebispo do Rio, Dom Orani Tempesta, ter se manifestado a favor da acolhida das pessoas de qualquer orientação sexual, conferir sacramentos a elas é tabu.
- Cito Bento 16: o cristianismo não é um conjunto de proibições - pensa o padre.
Outro padre que estuda a sexualidade é o jesuíta Luís Corrêa Lima. Em artigos, ele aponta brechas que garantem aos gays acesso à Igreja.
"Uma carta da Cúria Romana, de 1986, afirma que nenhum ser humano é mero homo ou hétero. Ele é, acima de tudo, criatura de Deus e destinatário de Sua Graça".
“Sempre fui muito religiosa, o arcebispo jantava na minha casa, conhecia todos os padres. Eu tinha 17 anos, no início da década de 1980, quando não aguentando mais procurei um padre para confessar: "estou apaixonada por uma menina". Apesar de ter me mandado orar, fazer jejum e tomar banho frio, ele me disse que eu iria para o inferno. Eu vivi lá por anos, até que encontrei um monge beneditino. Ele foi o primeiro que me disse que eu não estava no inferno, que era para eu ser como minha natureza mandava. Daí as coisas melhoraram e segui a vida religiosa. Entrei para um convento e tive sorte de a monja me aceitar, pois disse a ela logo que cheguei. Fiquei seis anos lá, até que, com medo dos votos de obediência, pedi licença e não voltei. Casei e tenho minha família e minha fé.”