A partir da questão do matrimônio entre pessoas do mesmo sexo, o autor adverte sobre a intervenção da Igreja católica: “Que uma forma histórica seja apresentada como natural exige uniformizar, homogeneizar, e esta é uma razão pela qual as hierarquias eclesiásticas se adaptaram melhor à ordem das ditaduras que à desordem democrática”. O artigo é de Jorge Jinkis, psicanalista, diretor da Revista Conjetural e autor do livro Indagaciones (Ed. Edhasa), e está publicado no jornal Página/12, 08-07-2010. A tradução é do Cepat. Eis o artigo. Há uma suposição: que existem especialistas, cientistas da psicologia, da biologia, da genética, da jurisprudência, que são chamados a dizer suas ocorrências com a roupagem da ciência. Certa ingenuidade e também um pouco de impostura alentam esta espécie de confusão democrática que a pobreza e a mediocridade teológica que dominam em nosso meio confundem com um sabá. Não vou apelar a documentos etnográficos nem recordar as múltiplas estruturas de parentesco que existiam e que persistem para sublinhar o caráter social e histórico de algumas instituições das culturas, entre elas o chamado matrimônio. Esta ideia romana que adquiriu um estatuto jurídico em nosso Ocidente, facilitava que uma mulher passasse da tutela, proteção ou servidão de seu pai à obediência de um marido que garantia o caráter “legítimo” de seus filhos. Ainda há pegadas deste modo de dominação, mas também é certo que existem muitas outras formas de convivência social, também familiares, que não se reduzem ao matrimônio e que são hoje reconhecidas pelo direito. Não é imprescindível o matrimônio para “se conjugar”, para estabelecer um “enlace” ou para “contraí-lo”, como ocorre às vezes com um resfriado. Há inúmeras palavras que falam daquelas pegadas às quais aludimos. Além disso, o “matrimônio entre pessoas do mesmo sexo” é uma denominação pouco feliz. Em primeiro lugar, porque costuma ocorrer que cada uma das pessoas tem o seu e obrigá-las a compartilhar “o mesmo” me parece uma extralimitação abusiva. Se acrescenta a isso que qualquer perspectiva histórica sobre o matrimônio entre pessoas – como se dizia até há pouco tempo – do “sexo oposto” deixa ver que se trata de um dos cenários preferidos da famosa disputa ou guerra entre os sexos, gente estranha que muitas vezes cisma, precisamente, em compartilhar o mesmo sexo. É fácil advertir que não sou um fanático do matrimônio, do matrimônio simplesmente, mesmo que essa falta de umidade atente contra instituição tão respeitável. E como em nosso país existe um casamento civil, também não me parece conveniente instalar alguma instância jurídica que supervisione a fé, a boa fé como condição de um casamento religioso, qualquer que seja a religião. Isso é conhecido como separação do Estado e da Igreja. A questão que se discute pode passar despercebida em meio a tanto barulho. Não se trata de saber se há formas psicopatológicas da sexualidade, assim como a ingerência das autoridades da Igreja católica argentina, que pretende legislar sobre os nossos amores e gozos sexuais. Tem todo o direito de defender sua posição em relação a esses assuntos e tratar de incidir sobre sua grei; nenhum direito sobre essa pretensão. É difícil falar disso sem historiar as complexíssimas relações que existiram entre a Igreja e os governos de Perón, em algum momento idílicas, em outros ásperas e até incandescentes. Não há lugar aqui para recordar esses antecedentes. Mas é preciso dizer que naqueles tempos a Igreja acentuou sua milenar tendência (que remonta aos anos 300) a se recostar no Estado, no poder secular, perdendo confiança em sua influência espiritual para alcançar seus fins. Também é certo que em nosso país isto leva o selo do estilo da Igreja espanhola, que colocou a tarefa da evangelização sob o guarda-chuva do que era o império nacional. Em fevereiro de 1929, Mussolini, por parte da Itália, e o cardeal Gasbarri, representando Pio XI, assinaram um tratado político e um acordo econômico pelo qual ficou estabelecido o Estado soberano da Cidade do Vaticano. Menor que a República de San Marino, mas com maior reputação, foi reconhecido pela legislação internacional e mantém relações diplomáticas com outros países. O chefe desse Estado é o Sumo Pontífice, que reúne em sua pessoa funções executivas, legislativas e judiciais. Para ocupar esse cargo não se precisa ter nascido em algum lugar específico: todos os cardeais que moram no Vaticano têm nacionalidade vaticana sem perder a de origem. Para dar um exemplo, se Francisco de Narváez tivesse a vocação e a aptidão adequada, não encontraria em sua nacionalidade um obstáculo para sua candidatura. Trata-se de um Estado propriamente dito, que cunha sua moeda, que dispõe de seus serviços econômicos, sanitários, educativos, e como se lhe reconhece uma missão espiritual, seus dignitários intervêm na política de outros Estados sem as travas que encontram ou a prudência que se espera dos diplomáticos de outros países. Gozam de uma imunidade ecumênica de limites insondáveis, como foi o caso, para dar outro exemplo, do bispo castrense monsenhor Baseotto, que propunha medidas apocalípticas para proteger a saúde pública. Há sete anos circula em língua italiana um Léxico da Igreja Católica, que define a homossexualidade como um “problema psíquico”, “contrário ao vínculo social”. Fidelíssima à doutrina de Estado da Santa Sé, a Conferência Episcopal Argentina emitiu em abril deste ano um documento que declara: “A união de pessoas do mesmo sexo carece dos elementos biológicos e antropológicos próprios do matrimônio e da família”. É difícil (mas acontece) que um psicanalista se faça de surdo a estas afirmações apresentadas como considerações espirituais sobre instituições sociais e históricas. Quando os psicanalistas escutam sacerdotes homossexuais, não se encontram com uma circunstância clínica que não seja política. Acontece que chegam ao consultório por sua condição de sacerdotes e não por sua homossexualidade, convencidos de que a Igreja não tem a menor ideia de quais são “os elementos biológicos e antropológicos próprios da família”. É certo, como disse Juan B. Ritvo (Página/12, 3-07-2010), que o inconsciente se presta pouco às discussões parlamentares, “no melhor das hipóteses porque comove as próprias bases da sociedade civil no particular ligame do erotismo com a morte”. Estou de acordo, e esse plano não é alheio à política, assim como a política não se reduz às discussões parlamentares. Assim como o inconsciente, ela entra volta e meia nos consultórios dos psicanalistas. O cardeal Jorge Bergoglio não deixou passar a oportunidade do Te Deum do Bicentenário para rechaçar o matrimônio entre pessoas homossexuais durante a sua homilia. E já antes, o arcebispo havia declarado que: “Dado que o Poder Executivo da Cidade de Buenos Aires é o garante da legalidade na cidade, o chefe de Governo, através do Ministério Público, tem a obrigação de apelar da sentença”. Esta intervenção de um argentino, e que é legítima para qualquer argentino seja ou não jesuíta, seria inadmissível para qualquer um que tivesse uma investidura concedida por outro Estado, mesmo que fosse nativo destas terras e tivesse motivos espirituais análogos. Mas, a que coisa a Igreja chama de “família”? O que ela entende por “matrimônio”? Recordará que Israel foi a Esposa de Deus (antes que se prostituísse)? Leva em conta que ela é “Esposa” de Cristo mesmo que Jesus Cristo tenha milhares de “Esposas”? Por que chama “irmãos” e “irmãs” a pessoas que não estão unidas por nenhum laço jurídico ou de sangue? Não há na Igreja “Pais”, “Mães”, “Filhos”? Teríamos que pedir-lhes que concorram aos tribunais mundanos para legitimar esses títulos? Me desculpe, mas a pergunta é irresistível: não faltam avós e netos? Ou tudo isto é um modo de falar sem consequências? Não creio. Tudo é mais pobre. A Igreja aceita mais ou menos chamar “família” à unidade de consumo burguesa composta por mãe e pai casados com filhos concebidos (não só pensados) dentro de um matrimônio consagrado (e estende sua benevolência a formas próximas). O problema é que quer fazer passar esta forma da família como forma “natural”, base da estrutura social (também natural) e condição da reprodução da espécie (mesmo que a espécie se arranjava bastante bem antes da existência da Igreja). Enunciamos o problema no começo. Que uma forma histórica (de qualquer instituição) seja apresentada como natural da espécie humana é colocar uma exigência de uniformizar, de homogeneizar, de universalizar, uma espécie de “globalização” avant la lettre. E para isso, que melhor recurso senão apelar a uma legislação que imponha ou proíba? É por isso, entre outras razões – mas esta é uma razão um pouco descuidada –, que a hierarquia eclesiástica da Igreja católica argentina se adaptou melhor à ordem imposta pelos governos ditatoriais em nosso país do que às desordens democráticas. Deve ser penoso para os cristãos convencidos que uma de suas igrejas acredite que a lei aperfeiçoa o crente melhor que a graça. Para ler mais: http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=34368 |