"A Bíblia não deve ser lida de forma literal, mas sim levando-se em consideração o contexto histórico em que foi escrita. Passagens bíblicas isoladas e fora de contexto foram usadas para justificar o racismo e a submissão das mulheres, assim como hoje são usadas para atacar os homossexuais. Mas todos somos iguais perante Deus, e é possível ser gay e ser religioso." Gene Robinson, primeiro bispo gay da Igreja Anglicana | As palavras citadas foram pronunciadas no salão da Pastoral Anchieta, localizado no subsolo da igreja Sagrado Coração, no campus da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Ali, a teóloga Maria Cristina Furtado foi a primeira oradora do debate sobre"Homofobia e religião", organizado pelo Departamento de Serviço Social da casa de estudos administrada pela Companhia de Jesus. A reportagem é de Bruno Bimbi, publicado no jornal Crítica de la Argentina, 10-05-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto. Depois de sua intervenção, o padre Luís Corrêa Lima, teólogo e professor da PUC-Rioe doutor em História pela UNB, justificou a abertura dessa instituição católica ao debate sobre a discriminação contra gays e lésbicas. "A universidade é formadora de opinião na sociedade, e por isso é importante que ela abra as suas portas a esses debates, mesmo que as mudanças na Igreja sejam lentas". O evento começou com a projeção do documentário "For the Bible tells me so"(Porque a Bíblia me diz assim, em tradução livre), que apresenta as histórias de vida de cinco famílias norte-americanas católicas e protestantes, profundamente religiosas, que tiveram que enfrentar seus próprios preconceitos diante da revelação da homossexualidade de alguns de seus membros e que questiona abertamente a leitura homofóbica dos textos bíblicos. O documentário inclui as opiniões de um rabino ortodoxo, de padres, pastores e de um professor de Harvard que defendem que "o verdadeiro pecado não é a homossexualidade, mas a homofobia". O bispo gay Um dos protagonistas do documentário é o bispo da diocese de New Hampshire, daIgreja Episcopal, Gene Robinson. A Igreja Episcopal faz parte da comunidade anglicana, com 75 milhões de fiéis em todo o mundo. A consagração de Robinson em 2004, depois de onze horas de debate entre os bispos, produziu uma crise que quase terminou com a divisão da Igreja, dado que os setores mais conservadores não aceitavam ter nas fileiras de sua Igreja um bispo abertamente gay, que, no momento de sua consagração, vivia há 15 anos com outro homem. Indignados, 19 bispos conservadores ameaçaram publicamente com um cisma, e a cerimônia de elevação de Robinson esteve marcada por ruidosos protestos, de um lado, e por manifestações de apoio que reuniram cerca de quatro mil pessoas, de outro, algo incomum em uma cerimônia religiosa. Robinson agradeceu as demonstrações de solidariedade e afirmou: "Suspeito que outras consagrações virão, e os gays e lésbicas serão recebidos abertamente em posições de liderança dentro da Igreja". O arcebispo de Canterbury, Rowan Williams, guia espiritual dos anglicanos no mundo, apoiou a consagração do primeiro bispo gay e disse à BBC que "Deus nos ensinará em nossas divisões, e um dia o agradecimento e o arrependimento nos levarão a compartilhar o que aprendemos". O documentário conta a história de vida do agora bispo, nascido no seio de uma família religiosa e conservadora, com muitos preconceitos sobre a homossexualidade. Robinson esteve casado com uma mulher, da qual finalmente se separou ao chegar à conclusão de que não podia mudar a si mesmo. Uma noite, finalmente, viajou à cidade de seus pais para lhes dizer a verdade. "A viagem de regresso ao Kentucky foi, talvez, a mais longa que eu já fiz. Tinha vergonha por ter me divorciado, e não havia uma maneira fácil para lhes dizer que eu era gay. Não me lembro se foi algo que meu pai me disse ou o que eu vi em seu rosto, mas não acreditei que fossem me deixar passar a noite em sua casa". Seus pais, que nessa noite pediram-lhe que não contasse a ninguém que era gay, o acompanharam, orgulhosos, anos depois, em sua cerimônia de consagração, que reuniu a imprensa de todo o mundo. "Uma abominação" Sem dúvida, umas das histórias mais fortes do documentário é a de uma mãe que rejeitou sua filha depois de ela lhe ter dito que era lésbica, afastando-se dela até que, nove meses depois de seu último contato por carta, a jovem decidiu tirar sua própria vida.Anna se pendurou dentro de seu armário com a corrente de seu cachorro. A mulher começou então a se questionar sobre tudo em que havia acreditado até então. "Minha filha está morta por causa das mentiras que a Igreja me ensinou. Ela teve que morrer para que eu pesquisasse sobre a homossexualidade. Haviam me ensinado que era uma abominação", afirmou a mãe de Anna, anos depois, em um ato público. "Não te deitarás com um homem, como se fosse mulher: isso é uma abominação" (Levítico 18, 22) e "Se um homem dormir com outro homem, como se fosse mulher, ambos cometerão uma coisa abominável. Serão punidos de morte e levarão a sua culpa" (Levítico 20, 13) são as passagens bíblicas mais citadas para justificar a homofobia, mesmo que sejam poucos os cristãos que ainda peçam a pena de morte para gays e lésbicas. No entanto, ninguém parece lembrar que o Levítico também diz que é "abominação" comer animais de mar ou de rio que não tenham barbatanas ou escamas, assim como certas aves e insetos que são enumerados em uma lista, ou qualquer tipo de réptil. Comer coelho não é abominação, mas é "imundo", assim como comer porco. Também a mulher é imunda quando dá a luz e, por 33 dias se teve um filho varão, ou por duas semanas se teve uma menina, não poderá entrar no templo. Depois, para se purificar, deverá sacrificar um cordeiro. Será imundo todo homem quando tiver fluxo de sêmen, e a cama em que se deitar também será imunda. Entre outras condutas proibidas está a de "vestir roupas com mistura de fios" e "danificar a ponta das barbas". Assim como o sexo anal entre homens, o adultério também tem a morte como pena. Essas leituras seletivas da Bíblia, feitas para condenar os homossexuais, são indicadas no documentário. Com muito mais detalhe, estão incluídas no livro no livro "Cristianismo, tolerância social e homossexualidade", de John Boswell, ex-professor de história medieval na Universidade de Yale. É provável que as descobertas de Boswell tenham inspirado os autores do filme. Além de questionar as interpretações homofóbicas das escrituras, esse historiador demonstrou que as traduções atuais da Bíblia estão cheias de mudanças intencionais, destinadas a justificar o ódio antigay (suas análises da expressão "contra natura" e do mito de Sodoma e Gomorra são reveladoras) e apresentou provas de que a condenação cristã à homossexualidade nem sempre existiu e que houve, séculos atrás, religiosos abertamente homossexuais e bodas entre homens celebradas pelo rito cristão. "Falamos sobre essas coisas, e o teto não caiu" O padre Luís Corrêa Lima, promotor da projeção do documentário, coordena uma linha de pesquisa intitulada “Diversidade sexual, cidadania e catolicismo", na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, onde atua como professor. O projeto se propõe a "analisar a complexa relação entre o catolicismo e a homossexualidade, e suas repercussões no espaço público e no exercício da cidadania". E já há estudantes realizando pesquisas de mestrado e doutorado sobre esses temas. Consultado pelo jornal Crítica de la Argentina, o padre Luís explicou que, "durante meu trabalho como padre, encontrei pessoas que atravessaram conflitos com a sua família e com a sua fé por causa de sua homossexualidade, e eu pensei que devia fazer algo. Há alguns anos, houve um debate sobre homossexualidade e fé cristã na Pastoral, e o teto não caiu. Sei que existem pessoas que não gostam disso, mas isto é uma universidade – católica, mas não deixa de ser uma universidade. A abertura para a realidade é fundamental, e eu só peço permissão quando é estritamente necessário". Para ler mais: in: http://www.unisinos.br/_ihu/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=22592 |