CARTA ABERTA AOS MEMBROS DO “RIACHO”
Caros amigos,
Gostaríamos de partilhar convosco algumas reflexões acerca da recente mensagem do Papa Bento XVI para o Dia Mundial da Paz de 2008.
A mensagem do Papa, que tem por título “Família Humana, Comunidade de Paz”, num ponto que muito especificamente nos concerne, diz : “Deste modo quem, mesmo inconscientemente, combate o instituto familiar”, entendido na exclusiva acepção da família fundada sobre o matrimónio entre um homem e uma mulher, “debilita a paz na comunidade inteira, nacional e internacional, porque enfraquece aquela que é efectivamente a principal ‘agência’ de paz. Este é um ponto que merece especial reflexão : tudo o que contribui para debilitar a família fundada sobre o matrimónio de um homem e uma mulher (…) constitui um impedimento objectivo no caminho da paz.”
Se lermos o documento “Considerações acerca dos projectos de reconhecimento legal das uniões entre pessoas homossexuais”, de 3 de Junho de 2003, aprovado pelo Papa João Paulo II e assinado pelo então Cardeal Ratzinger, não se torna muito difícil entender o que significa, para o Papa Bento XVI, “combater” o instituto familiar ou “debilitar” a família : entre outros assuntos, no elenco das coisas nocivas, estão as uniões homossexuais. Na tentativa social e política de reconhecimento legal das uniões do mesmo sexo, a Congregação Para a Doutrina da Fé vê uma concorrência e um ataque à instituição da família e do casamento. “Reconhecer legalmente as uniões homossexuais, ou equipará--las ao matrimónio, significaria não só aprovar um comportamento desviante, com a consequência de torná-lo um modelo na sociedade actual, mas também ofuscar valores fundamentais que pertencem ao património comum da humanidade”, lê-se nesse documento.
Não será, portanto, totalmente despropositado concluir, quanto à mensagem do Papa para o Dia Mundial da Paz, que os homossexuais que aspirem, “mesmo inconscientemente”, ao reconhecimento legal das uniões do mesmo sexo são considerados por Bento XVI, pessoas que “debilita[m] a paz na comunidade inteira, nacional e internacional”. Sendo a expressão “mesmo inconscientemente” uma expressão de longo alcance, podemos dizer que as palavras do Papa abrangem, na prática, todos os homossexuais, isto é, qualquer um de nós.
Assim, desde o Catecismo da Igreja Católica, que continua a afirmar que “os actos homossexuais são intrinsecamente desordenados”, passando pelo documento “Considerações acerca dos projectos de reconhecimento legal das uniões entre pessoas homossexuais”, até à recente mensagem do Papa para o Dia Mundial da Paz de 2008, estende-se um arco cada vez mais definido ideologicamente, sempre à volta do tema da família, de incompreensão da homossexualidade. Só nos restava, por fim, sermos considerados ameaças à paz, “mesmo inconscientemente”.
Como católicos de condição homossexual, perante a magnitude da incompreensão, é preciso reagir e fazer alguma coisa. Talvez a constituição de uma Associação de Pais, Amigos e Familiares de Pessoas Homossexuais, de carácter não-confessional, seja uma possível resposta, humilde e pacífica.
Trata-se de dar voz a experiências positivas de integração da homossexualidade nas famílias em que nascemos e nos círculos de amigos, muitos deles heterossexuais, em que fomos crescendo, experiências vividas por alguns de nós e partilhadas com todos no grupo. É uma vivência humana e espiritual valiosa, vivência de pessoas comuns e amadas por Deus, fora das convenções que pretendem transformar a família num mero artefacto ideológico, vivência de tantas coisas belas que não se pode perder e deve ser testemunhada num contexto mais amplo e público, de forma a dar muito fruto, e frutos de bem, que o mesmo é dizer, frutos de paz.
Da mesma forma, as experiências negativas vividas por outros de nós, experiências de violência homofóbica sofrida no dia-a-dia nas mais diversas circunstâncias, clarificaram-nos interiormente a percepção da raiz profunda do preconceito e podem também tornar-se úteis e portadoras de alguma mudança positiva na sociedade.
Temos de lutar mais e melhor, sem olhar ao imprevisível resultado do esforço, num atrasado país católico como o nosso, pelo reconhecimento da dignidade da nossa condição, pela defesa dos nossos direitos enquanto homossexuais, pela transformação das mentalidades e erradicação do preconceito que está na origem de todas as formas de violência que padecemos.
Lembrámo-nos de escolher a oliveira, árvore que simboliza a paz, para sigla e nome da Associação, por tudo o que ficou dito. E é igualmente num propósito de concretizar a esperança, recordados das exortatórias reflexões do Papa Bento XVI na sua segunda carta encíclica “Salvos na esperança”, que este projecto, de carácter não--confessional, ensaia os primeiros passos. São as próprias palavras do Sumo Pontífice, nessa encíclica, que queremos citar aqui para exprimir a razão desta proposta : “A fé em Cristo nunca se limitou a olhar só para trás nem só para o alto, mas olhou sempre também para a frente”.
Votos de paz e de bom ano,
João Noronha José António Almeida
Como é óbvio eu subscrevo ! Quim